Um espaço para reinventar Portugal como nação de todo o Mundo, que estabeleça pontes, mediações e diálogos entre todos os povos, culturas e civilizações e promova os valores mais universalistas, conforme o símbolo da Esfera Armilar. Há que visar o melhor possível para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, orientada não só para o bem da espécie humana, mas também para a preservação da natureza e o bem-estar de todas as formas de vida sencientes.

"Nós, Portugal, o poder ser"

- Fernando Pessoa, Mensagem.

Por um patriotismo trans-patriótico e universalista. Oito considerações para um Outro Portugal

1. A milenar tradição contemplativa e meditativa (transversal às diferentes religiões e espiritualidades, também laicas) e os progressos contemporâneos da microfísica e das neurociências (que hoje se aproximam numa convergência histórica, como nas experiências realizadas no MIT, em Massachusetts, e nos encontros anuais Mind and Life) parecem indicar não ser possível encontrar, quer na constituição da chamada matéria, quer na da chamada mente, ou seja, nisso cujo conjunto designamos por realidade, uma mínima entidade que exista em si e por si e que permaneça idêntica a si mesma, ou seja, que tenha características próprias. Todas as dimensões da chamada realidade parecem obedecer assim a duas leis fundamentais, a de interdependência e a de impermanência, que se resumem na sua ausência de características ou qualidades intrínsecas. Como se pode constatar na mínima experiência perceptiva e como a observação científica confirma, sujeito e objecto constituem-se mutuamente e interagem num dinamismo e numa metamorfose constantes, como meros fenómenos recíprocos, sem essência própria. O conceito de identidade parece ser assim uma abstracção desadequada para expressar o real, sem outro fundamento senão o de ser uma ficção convencional e funcional, que serve o reproduzir de uma tradição fortemente entranhada nos hábitos culturais, psicológicos e sociais do senso comum humano.

2. O conceito de identidade nasce, como o seu correlato, o de alteridade, de uma experiência ingénua e irreflectida, na qual, devido a tendências e hábitos inconscientes, o sujeito se crê distinto do objecto, o eu do não-eu, o mesmo do outro, o idêntico do diferente, ao mesmo tempo que esses termos da experiência se crêem reais e existentes em si e por si, com características e qualidades próprias, positivas, negativas ou neutras, que nunca são mais do que projecção da percepção inconscientemente condicionada. Este estado, que se pode chamar de ignorância dualista, origina três tendências da experiência mental-emocional na relação sujeito-objecto: 1 – o fascínio e o desejo-apego, caso o objecto seja percepcionado como atraente e positivo; 2 – o medo e a aversão, caso o objecto seja percepcionado como repulsivo e negativo; 3 – a indiferença, caso o objecto seja percepcionado como neutro. Qualquer destas experiências resulta em conflito e sofrimento, primeiro interno e depois externo, indissociável de uma extrema vulnerabilidade perante todas as vicissitudes da vida, pois a mente dominada pelo apego e pela aversão não pode assegurar de modo algum a posse do que deseja nem a exclusão do que rejeita, devido à lei da impermanência e metamorfose constantes de tudo, sujeitando-se assim constantemente à carência do que deseja ou ao medo de o perder, bem como à ameaça do que rejeita ou ao medo de o não evitar. Por outro lado, a indiferença é uma falsa alternativa, que apenas gera a experiência de solidão, de entorpecimento mental e despotenciamento vital.

Da ignorância dualista e da combinação das três tendências referidas resultam as pulsões emocionais inerentes a todos os actos e omissões, mentais, verbais e físicos, que as tradições ético-espirituais, teístas ou não-teístas, religiosas ou laicas, designam como actos negativos, faltas, pecados ou toxinas mentais, como hoje alguns preferem: desejo possessivo, ódio e cólera, inveja e ciúme, orgulho e arrogância, avidez e avareza, torpor mental e tristeza, entre muitas outras. Em qualquer dos casos, antes de lesarem os outros, estas pulsões lesam a mente do próprio sujeito a partir do primeiro instante em que nela surgem, distorcendo a percepção da realidade, gerando ignorância, insensibilidade e tormento interior e desarmonizando a circulação da energia vital, o que tem também efeitos somáticos e predispõe o organismo para todo o tipo de doenças. Por isso são objectivamente negativas, independentemente de qualquer doutrina moral ou revelação religiosa.

3. Um olhar desapaixonado e realista sobre o processo e a história da civilização humana, desde os seus primórdios até hoje, não pode deixar de constatar que tudo – a organização social, a ciência, a técnica, a política, a economia, a cultura, a educação e a religião - tem sido predominantemente movido pela ignorância dualista, o apego, a aversão e a indiferença, bem como por todas as suas combinações possíveis, com o resultado evidente, em termos gerais, de a humanidade até hoje sempre ter obtido precisamente o que mais rejeita, o sofrimento, e sempre haver falhado aquilo a que mais aspira, a felicidade: prova evidente de que o desejo-apego e a aversão resultam precisamente no contrário do que buscam. As únicas excepções a esta monumental ilusão e a este grandioso fracasso histórico colectivo, habitualmente camuflado com os nomes de “progresso”, “evolução”, “desenvolvimento”, etc., são os seres que despertam e se libertam da ignorância dualista e das suas consequências mentais e emocionais: aqueles que as várias tradições designam como sábios, santos, etc., e que são considerados mestres espirituais quando à libertação individual acrescentam o amor e a compaixão de continuarem a agir, interior e exteriormente, para o bem e a libertação dos outros.

4. Aplicada à questão das sociedades, das culturas, das nações e das pátrias, esta visão constata que nenhuma delas existe em si e por si, com uma identidade e características permanentes e irredutivelmente próprias. Todas, pelo contrário, apesar de apresentarem complexas singularidades em devir, nascem, vivem e morrem ou metamorfoseiam-se de acordo com as leis fundamentais de interdependência e impermanência que abrangem todas as dimensões do real. Com efeito, quem pode, por exemplo, pensar o que é Portugal separando a sua história e cultura das de todos (ou quase) os povos europeus, africanos, sul-americanos e orientais, sem rejeitar que no plano da língua e da mesma história e cultura existem afinidades mais imediatas com as nações lusófonas? O conceito de identidade nacional é pois, tal como o de identidade pessoal - sobretudo se pensado de forma essencialista ou substancialista, como algo que em si e por si pré-exista ou exista fora de um devir interdependente com todas as formas de alteridade - , uma mera abstracção que em última instância apenas funciona na lógica da ignorância dualista que predomina na mente humana.

5. Tal como acontece quando se extrema a bipolarização eu-outro, o extremar da suposta identidade cultural ou nacional como uma essência única, permanente e independente das demais, conduz as mentes ao nacionalismo ou ao patriotismo ensimesmado que potenciam essa ignorância dualista e esses complexos de apego ao que parece ser próprio e de indiferença ou aversão ao que parece ser alheio, o que já vimos serem as causas fundamentais de insensibilidade, sofrimento e conflito para quem por elas se deixa dominar e para quem lhe sofre as acções daí decorrentes. O nacionalismo ou patriotismo comum, levando a amar a sua cultura, nação ou pátria acima das demais, é pois injustificável e condenável em termos espirituais, sapienciais e éticos, sendo incompatível com qualquer projecto de emancipação da consciência e de serviço do bem comum a todos os homens e a todos os seres.

6. Há todavia a possibilidade de se conceber e praticar uma outra forma, não de nacionalismo, mas de patriotismo, o patriotismo trans-patriótico e universalista, que, sem se desenraizar da realidade mais concreta e imediata num transnacionalismo ou universalismo vazio e abstracto, apenas preze, cultive e promova, numa determinada tradição histórico-cultural e numa determinada nação ou pátria, aquilo que na sua singularidade houver de melhor, ou seja, a sua aspiração ao e contributo para o bem comum universal, não só dos homens, mas de todos os seres. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que em última instância aspira a orientar as energias ético-espirituais, culturais e sócio-político-económicas de uma dada nação ou pátria para que se superem tanto quanto possível as fronteiras e barreiras, primeiro mentais e afectivas, e depois institucionais e territoriais, entre todos os povos e culturas, de modo a que a comunidade humana possa expressar o mais possível, sem prejuízo das diferenças inerentes à sua constituição plural e complexa, a natureza e as leis fundamentais da própria realidade: ausência de id-entidades substanciais com características intrínsecas, interdependência, impermanência. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que aspira a converter muros em pontes e a romper o círculo vicioso e infernal em que tem decorrido e decorre a história da civilização humana, devolvendo a humanidade e o mundo ao Paraíso – ou seja, à paz, sabedoria e liberdade primordial - que no seu íntimo encobrem. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o único que está de acordo com a milenar tradição sapiencial da humanidade e com a ciência contemporânea, convergindo para a verdadeira evolução que é a da consciência e para o verdadeiro progresso e des-envolvimento que é o ético-espiritual, entendendo por tal o despertar da dualidade que permita ver e sentir o outro como a si mesmo e assim contribuir para a emancipação mental, cultural, social, política e económica de todos os homens, bem como para o respeito da harmonia ecológica e do direito à vida e ao bem-estar de todos os seres sencientes.

7. Este patriotismo trans-patriótico e universalista é o que encontro no melhor da ideia de Portugal e da comunidade lusófona que – depurada do lastro de muitos condicionantes - interpreto em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, para apenas referir os mais destacados. Foi ele, embora ainda informulado e sem a fundamentação aqui apresentada, que inspirou o Manifesto da Nova Águia e a Declaração de Princípios e Objectivos do MIL – Movimento Internacional Lusófono. Foi o desvio desta amplitude de desígnios e a sua redução ao que interpreto como um mero neonacionalismo lusófono que me levou a demitir-me de presidente deste último movimento e a redigir o Manifesto “Refundar Portugal” (umoutroportugal.blogspot.com). É apenas à luz do patriotismo trans-patriótico e universalista, como projecto fundamentalmente ético-espiritual e só a partir daí cultural, cívico, social, político e económico, que considero possível uma mudança fundamental nos rumos sombrios do actual fim de ciclo civilizacional. Não parece haver possibilidade de real transformação do mundo que não se enraíze primeiro numa profunda transformação da mente que o percepciona. A grande Revolução presente e futura, cada vez mais emergente em todo o planeta, é a união inseparável dessa transformação mental – a que alguns chamam “meditação” - e de todas as esferas da actividade humana, incluindo a económica e a política. Quando digo “transformação mental” refiro-me ao simples treino da mente para ver as coisas como são, transcendendo a dualidade, os conceitos e os juízos, o apego e a aversão, o medo e a expectativa, o passado, o presente e o futuro, na experiência do aqui e agora de cada instante, iluminada pelo amor e pela compaixão. Nada de necessariamente religioso, místico, esotérico ou exótico e que não vem do Oriente porque a mais profunda cultura ocidental, clássica ou cristã, sempre o conheceu. É a redescoberta disso, mais do que qualquer ideologia laica ou religiosa, a grande novidade que cresce hoje como bola de neve em todo o mundo.

8. Exorto a que divulguem, discutam e enviem sugestões para aperfeiçoar o Manifesto “Refundar Portugal”, de modo a que possamos praticar estas ideias e trazer desde já para a nossa vida quotidiana essa diferença que consideramos essencial para o mundo: abertura, clareza e paz da mente e do coração, capacidade de diálogo e compreensão, amor aos homens e aos seres vivos - para além das diferenças de nação, língua, etnia, cultura, religião, ideologia e espécie - , promoção e pedagogia dos valores mais benignos e universais das culturas lusófonas em diálogo com os de todas as culturas planetárias, intervenção cívica, cultural e social que afirme estes valores na esfera pública, política e económica.

umoutroportugal.blogspot.com

6 comentários:

Anónimo disse...

É urgente mudarmos a forma como olhamos e percebemos os fenomenos que nos rodeiam e o mundo onde vivemos!

Anónimo disse...

É bom saber que finalmente se parte do Principio Fundamental da Vida para se abordar questôes que ilusóriamente são vistas à partida como matérias de naturezas diferentes. Posto o Absoluto como ponto de partida (ver as coisas como são sem filtros nem mesmo dissociação objecto/observador) e posto o Relativo como o ponto onde a mudança é exercida isso conduz ao ponto mais complexo e fundamental: de Absoluto alcançado, como identificador da Verdade é por si só suficiente à compreensão do Relativo?.
Entenda-se que quando aqui se refere Absoluto e Relativo é apenas à laia de melhor compreensão do que se quer explicar, pois estes existem tão inseparáveis e tão só a mesma coisa quais, por exemplo, corpo e mente.

Parece-me esta ser a coisa mais importante a focar. Não tanto a Intenção que advém do Ser Absoluto e que o faz devidamente exercer o seu exercício mas mais ser este bom concenhedor do Relativo (em oposição ao que conhece o Absoluto) para assim conseguir fazer um exercicio que leve a bom termo o que parece que o Paulo acabou de formular: "Patriotismo Trans-Patriótico e Universalista"

Cristina Castro disse...

Só mudando as mentalidades e as percepções individuais, conseguiremos a natural harmonia do todo! Pensando, sentindo e agindo em concordância com esse objectivo maior! Focando as mentes e alimentando os grandes valores: Paz, Amor, Saúde, Alegria, Prosperidade, Sucesso, Abundância, Verdade, Justiça para todos os Seres!

João Beato disse...

Paulo, estou absolutamente de acordo com toda esta perspectiva. Julgo, até, ser este o verdadeiro e único ponto de partida possível para qualquer Outro Portugal. Embora seja claro que é este o terreno de onde surgiu o Manifesto, é porém possível que quem o leia possa não identificar as suas implicações quanto à tarefa individual a que cada um se deve entregar. Refiro-me, naturalmente, ao desenvolvimento da atenção meditativa, ou meditação. Afinal de contas, é precisamente aí que tudo começa. Parece-me que ficou bem claro no teu texto que o patriotismo trans-patriótico e universal depende, necessariamente, da transformação da mente através de determinadas técnicas.
Contudo, é somente nos pontos 5 e 8 do Manifesto que se aborda a questão relativa às técnicas de atenção, confinadas ao serviço público de saúde e à sua implementação nos currículos escolares. Julgo, por isso, que a visão explanada nestas oito considerações poderia estar mais evidente no texto do Manifesto.
Defendo que o desenvolvimento da atenção meditativa é tão importante para o ser humano integral como a aprendizagem da leitura, da aritmética ou da expressão criativa. Não vejo outra via possível para a transformação da sociedade que não parta da transformação individual da mente de cada um de nós. Pode ser que esteja enganado, mas também não vejo uma via possível para a transformação individual da mente sem o recurso a determinadas técnicas de atenção.
Parecendo-me ser este um ponto fundamental e basilar para Outro Portugal, acho que se poderia começar a pensar na criação de um grupo de trabalho dedicado a toda esta questão.
Seria oportuno fazer uma investigação sobre as experiências que têm sido realizadas em alguns métodos pedagógicos, assim como reunir informação científica sobre os seus benefícios. Também seria muito interessante poder dar início a algum 'projecto piloto' nalguma instituição escolar.

Paulo Borges disse...

João, se não dei maior destaque a esta questão foi estrategicamente, pois colocá-la em maior evidência pode gerar ainda muitos anticorpos... Ela é todavia o núcleo e o motor de tudo o que procuro fazer, pois também me parece evidente que sem mudar a mente nada se muda.

Apelo a que avances com propostas concretas relativas à questão da meditação/técnicas de atenção.

Abraço

João Beato disse...

Ok, Paulo, vou pensar no assunto. Abraço

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Por um patriotismo trans-patriótico e universalista. Oito considerações para um Outro Portugal

1. A milenar tradição contemplativa e meditativa (transversal às diferentes religiões e espiritualidades, também laicas) e os progressos contemporâneos da microfísica e das neurociências (que hoje se aproximam numa convergência histórica, como nas experiências realizadas no MIT, em Massachusetts, e nos encontros anuais Mind and Life) parecem indicar não ser possível encontrar, quer na constituição da chamada matéria, quer na da chamada mente, ou seja, nisso cujo conjunto designamos por realidade, uma mínima entidade que exista em si e por si e que permaneça idêntica a si mesma, ou seja, que tenha características próprias. Todas as dimensões da chamada realidade parecem obedecer assim a duas leis fundamentais, a de interdependência e a de impermanência, que se resumem na sua ausência de características ou qualidades intrínsecas. Como se pode constatar na mínima experiência perceptiva e como a observação científica confirma, sujeito e objecto constituem-se mutuamente e interagem num dinamismo e numa metamorfose constantes, como meros fenómenos recíprocos, sem essência própria. O conceito de identidade parece ser assim uma abstracção desadequada para expressar o real, sem outro fundamento senão o de ser uma ficção convencional e funcional, que serve o reproduzir de uma tradição fortemente entranhada nos hábitos culturais, psicológicos e sociais do senso comum humano.

2. O conceito de identidade nasce, como o seu correlato, o de alteridade, de uma experiência ingénua e irreflectida, na qual, devido a tendências e hábitos inconscientes, o sujeito se crê distinto do objecto, o eu do não-eu, o mesmo do outro, o idêntico do diferente, ao mesmo tempo que esses termos da experiência se crêem reais e existentes em si e por si, com características e qualidades próprias, positivas, negativas ou neutras, que nunca são mais do que projecção da percepção inconscientemente condicionada. Este estado, que se pode chamar de ignorância dualista, origina três tendências da experiência mental-emocional na relação sujeito-objecto: 1 – o fascínio e o desejo-apego, caso o objecto seja percepcionado como atraente e positivo; 2 – o medo e a aversão, caso o objecto seja percepcionado como repulsivo e negativo; 3 – a indiferença, caso o objecto seja percepcionado como neutro. Qualquer destas experiências resulta em conflito e sofrimento, primeiro interno e depois externo, indissociável de uma extrema vulnerabilidade perante todas as vicissitudes da vida, pois a mente dominada pelo apego e pela aversão não pode assegurar de modo algum a posse do que deseja nem a exclusão do que rejeita, devido à lei da impermanência e metamorfose constantes de tudo, sujeitando-se assim constantemente à carência do que deseja ou ao medo de o perder, bem como à ameaça do que rejeita ou ao medo de o não evitar. Por outro lado, a indiferença é uma falsa alternativa, que apenas gera a experiência de solidão, de entorpecimento mental e despotenciamento vital.

Da ignorância dualista e da combinação das três tendências referidas resultam as pulsões emocionais inerentes a todos os actos e omissões, mentais, verbais e físicos, que as tradições ético-espirituais, teístas ou não-teístas, religiosas ou laicas, designam como actos negativos, faltas, pecados ou toxinas mentais, como hoje alguns preferem: desejo possessivo, ódio e cólera, inveja e ciúme, orgulho e arrogância, avidez e avareza, torpor mental e tristeza, entre muitas outras. Em qualquer dos casos, antes de lesarem os outros, estas pulsões lesam a mente do próprio sujeito a partir do primeiro instante em que nela surgem, distorcendo a percepção da realidade, gerando ignorância, insensibilidade e tormento interior e desarmonizando a circulação da energia vital, o que tem também efeitos somáticos e predispõe o organismo para todo o tipo de doenças. Por isso são objectivamente negativas, independentemente de qualquer doutrina moral ou revelação religiosa.

3. Um olhar desapaixonado e realista sobre o processo e a história da civilização humana, desde os seus primórdios até hoje, não pode deixar de constatar que tudo – a organização social, a ciência, a técnica, a política, a economia, a cultura, a educação e a religião - tem sido predominantemente movido pela ignorância dualista, o apego, a aversão e a indiferença, bem como por todas as suas combinações possíveis, com o resultado evidente, em termos gerais, de a humanidade até hoje sempre ter obtido precisamente o que mais rejeita, o sofrimento, e sempre haver falhado aquilo a que mais aspira, a felicidade: prova evidente de que o desejo-apego e a aversão resultam precisamente no contrário do que buscam. As únicas excepções a esta monumental ilusão e a este grandioso fracasso histórico colectivo, habitualmente camuflado com os nomes de “progresso”, “evolução”, “desenvolvimento”, etc., são os seres que despertam e se libertam da ignorância dualista e das suas consequências mentais e emocionais: aqueles que as várias tradições designam como sábios, santos, etc., e que são considerados mestres espirituais quando à libertação individual acrescentam o amor e a compaixão de continuarem a agir, interior e exteriormente, para o bem e a libertação dos outros.

4. Aplicada à questão das sociedades, das culturas, das nações e das pátrias, esta visão constata que nenhuma delas existe em si e por si, com uma identidade e características permanentes e irredutivelmente próprias. Todas, pelo contrário, apesar de apresentarem complexas singularidades em devir, nascem, vivem e morrem ou metamorfoseiam-se de acordo com as leis fundamentais de interdependência e impermanência que abrangem todas as dimensões do real. Com efeito, quem pode, por exemplo, pensar o que é Portugal separando a sua história e cultura das de todos (ou quase) os povos europeus, africanos, sul-americanos e orientais, sem rejeitar que no plano da língua e da mesma história e cultura existem afinidades mais imediatas com as nações lusófonas? O conceito de identidade nacional é pois, tal como o de identidade pessoal - sobretudo se pensado de forma essencialista ou substancialista, como algo que em si e por si pré-exista ou exista fora de um devir interdependente com todas as formas de alteridade - , uma mera abstracção que em última instância apenas funciona na lógica da ignorância dualista que predomina na mente humana.

5. Tal como acontece quando se extrema a bipolarização eu-outro, o extremar da suposta identidade cultural ou nacional como uma essência única, permanente e independente das demais, conduz as mentes ao nacionalismo ou ao patriotismo ensimesmado que potenciam essa ignorância dualista e esses complexos de apego ao que parece ser próprio e de indiferença ou aversão ao que parece ser alheio, o que já vimos serem as causas fundamentais de insensibilidade, sofrimento e conflito para quem por elas se deixa dominar e para quem lhe sofre as acções daí decorrentes. O nacionalismo ou patriotismo comum, levando a amar a sua cultura, nação ou pátria acima das demais, é pois injustificável e condenável em termos espirituais, sapienciais e éticos, sendo incompatível com qualquer projecto de emancipação da consciência e de serviço do bem comum a todos os homens e a todos os seres.

6. Há todavia a possibilidade de se conceber e praticar uma outra forma, não de nacionalismo, mas de patriotismo, o patriotismo trans-patriótico e universalista, que, sem se desenraizar da realidade mais concreta e imediata num transnacionalismo ou universalismo vazio e abstracto, apenas preze, cultive e promova, numa determinada tradição histórico-cultural e numa determinada nação ou pátria, aquilo que na sua singularidade houver de melhor, ou seja, a sua aspiração ao e contributo para o bem comum universal, não só dos homens, mas de todos os seres. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que em última instância aspira a orientar as energias ético-espirituais, culturais e sócio-político-económicas de uma dada nação ou pátria para que se superem tanto quanto possível as fronteiras e barreiras, primeiro mentais e afectivas, e depois institucionais e territoriais, entre todos os povos e culturas, de modo a que a comunidade humana possa expressar o mais possível, sem prejuízo das diferenças inerentes à sua constituição plural e complexa, a natureza e as leis fundamentais da própria realidade: ausência de id-entidades substanciais com características intrínsecas, interdependência, impermanência. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que aspira a converter muros em pontes e a romper o círculo vicioso e infernal em que tem decorrido e decorre a história da civilização humana, devolvendo a humanidade e o mundo ao Paraíso – ou seja, à paz, sabedoria e liberdade primordial - que no seu íntimo encobrem. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o único que está de acordo com a milenar tradição sapiencial da humanidade e com a ciência contemporânea, convergindo para a verdadeira evolução que é a da consciência e para o verdadeiro progresso e des-envolvimento que é o ético-espiritual, entendendo por tal o despertar da dualidade que permita ver e sentir o outro como a si mesmo e assim contribuir para a emancipação mental, cultural, social, política e económica de todos os homens, bem como para o respeito da harmonia ecológica e do direito à vida e ao bem-estar de todos os seres sencientes.

7. Este patriotismo trans-patriótico e universalista é o que encontro no melhor da ideia de Portugal e da comunidade lusófona que – depurada do lastro de muitos condicionantes - interpreto em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, para apenas referir os mais destacados. Foi ele, embora ainda informulado e sem a fundamentação aqui apresentada, que inspirou o Manifesto da Nova Águia e a Declaração de Princípios e Objectivos do MIL – Movimento Internacional Lusófono. Foi o desvio desta amplitude de desígnios e a sua redução ao que interpreto como um mero neonacionalismo lusófono que me levou a demitir-me de presidente deste último movimento e a redigir o Manifesto “Refundar Portugal” (umoutroportugal.blogspot.com). É apenas à luz do patriotismo trans-patriótico e universalista, como projecto fundamentalmente ético-espiritual e só a partir daí cultural, cívico, social, político e económico, que considero possível uma mudança fundamental nos rumos sombrios do actual fim de ciclo civilizacional. Não parece haver possibilidade de real transformação do mundo que não se enraíze primeiro numa profunda transformação da mente que o percepciona. A grande Revolução presente e futura, cada vez mais emergente em todo o planeta, é a união inseparável dessa transformação mental – a que alguns chamam “meditação” - e de todas as esferas da actividade humana, incluindo a económica e a política. Quando digo “transformação mental” refiro-me ao simples treino da mente para ver as coisas como são, transcendendo a dualidade, os conceitos e os juízos, o apego e a aversão, o medo e a expectativa, o passado, o presente e o futuro, na experiência do aqui e agora de cada instante, iluminada pelo amor e pela compaixão. Nada de necessariamente religioso, místico, esotérico ou exótico e que não vem do Oriente porque a mais profunda cultura ocidental, clássica ou cristã, sempre o conheceu. É a redescoberta disso, mais do que qualquer ideologia laica ou religiosa, a grande novidade que cresce hoje como bola de neve em todo o mundo.

8. Exorto a que divulguem, discutam e enviem sugestões para aperfeiçoar o Manifesto “Refundar Portugal”, de modo a que possamos praticar estas ideias e trazer desde já para a nossa vida quotidiana essa diferença que consideramos essencial para o mundo: abertura, clareza e paz da mente e do coração, capacidade de diálogo e compreensão, amor aos homens e aos seres vivos - para além das diferenças de nação, língua, etnia, cultura, religião, ideologia e espécie - , promoção e pedagogia dos valores mais benignos e universais das culturas lusófonas em diálogo com os de todas as culturas planetárias, intervenção cívica, cultural e social que afirme estes valores na esfera pública, política e económica.

umoutroportugal.blogspot.com

6 comentários:

Anónimo disse...

É urgente mudarmos a forma como olhamos e percebemos os fenomenos que nos rodeiam e o mundo onde vivemos!

Anónimo disse...

É bom saber que finalmente se parte do Principio Fundamental da Vida para se abordar questôes que ilusóriamente são vistas à partida como matérias de naturezas diferentes. Posto o Absoluto como ponto de partida (ver as coisas como são sem filtros nem mesmo dissociação objecto/observador) e posto o Relativo como o ponto onde a mudança é exercida isso conduz ao ponto mais complexo e fundamental: de Absoluto alcançado, como identificador da Verdade é por si só suficiente à compreensão do Relativo?.
Entenda-se que quando aqui se refere Absoluto e Relativo é apenas à laia de melhor compreensão do que se quer explicar, pois estes existem tão inseparáveis e tão só a mesma coisa quais, por exemplo, corpo e mente.

Parece-me esta ser a coisa mais importante a focar. Não tanto a Intenção que advém do Ser Absoluto e que o faz devidamente exercer o seu exercício mas mais ser este bom concenhedor do Relativo (em oposição ao que conhece o Absoluto) para assim conseguir fazer um exercicio que leve a bom termo o que parece que o Paulo acabou de formular: "Patriotismo Trans-Patriótico e Universalista"

Cristina Castro disse...

Só mudando as mentalidades e as percepções individuais, conseguiremos a natural harmonia do todo! Pensando, sentindo e agindo em concordância com esse objectivo maior! Focando as mentes e alimentando os grandes valores: Paz, Amor, Saúde, Alegria, Prosperidade, Sucesso, Abundância, Verdade, Justiça para todos os Seres!

João Beato disse...

Paulo, estou absolutamente de acordo com toda esta perspectiva. Julgo, até, ser este o verdadeiro e único ponto de partida possível para qualquer Outro Portugal. Embora seja claro que é este o terreno de onde surgiu o Manifesto, é porém possível que quem o leia possa não identificar as suas implicações quanto à tarefa individual a que cada um se deve entregar. Refiro-me, naturalmente, ao desenvolvimento da atenção meditativa, ou meditação. Afinal de contas, é precisamente aí que tudo começa. Parece-me que ficou bem claro no teu texto que o patriotismo trans-patriótico e universal depende, necessariamente, da transformação da mente através de determinadas técnicas.
Contudo, é somente nos pontos 5 e 8 do Manifesto que se aborda a questão relativa às técnicas de atenção, confinadas ao serviço público de saúde e à sua implementação nos currículos escolares. Julgo, por isso, que a visão explanada nestas oito considerações poderia estar mais evidente no texto do Manifesto.
Defendo que o desenvolvimento da atenção meditativa é tão importante para o ser humano integral como a aprendizagem da leitura, da aritmética ou da expressão criativa. Não vejo outra via possível para a transformação da sociedade que não parta da transformação individual da mente de cada um de nós. Pode ser que esteja enganado, mas também não vejo uma via possível para a transformação individual da mente sem o recurso a determinadas técnicas de atenção.
Parecendo-me ser este um ponto fundamental e basilar para Outro Portugal, acho que se poderia começar a pensar na criação de um grupo de trabalho dedicado a toda esta questão.
Seria oportuno fazer uma investigação sobre as experiências que têm sido realizadas em alguns métodos pedagógicos, assim como reunir informação científica sobre os seus benefícios. Também seria muito interessante poder dar início a algum 'projecto piloto' nalguma instituição escolar.

Paulo Borges disse...

João, se não dei maior destaque a esta questão foi estrategicamente, pois colocá-la em maior evidência pode gerar ainda muitos anticorpos... Ela é todavia o núcleo e o motor de tudo o que procuro fazer, pois também me parece evidente que sem mudar a mente nada se muda.

Apelo a que avances com propostas concretas relativas à questão da meditação/técnicas de atenção.

Abraço

João Beato disse...

Ok, Paulo, vou pensar no assunto. Abraço

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