Um espaço para reinventar Portugal como nação de todo o Mundo, que estabeleça pontes, mediações e diálogos entre todos os povos, culturas e civilizações e promova os valores mais universalistas, conforme o símbolo da Esfera Armilar. Há que visar o melhor possível para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, orientada não só para o bem da espécie humana, mas também para a preservação da natureza e o bem-estar de todas as formas de vida sencientes.

"Nós, Portugal, o poder ser"

- Fernando Pessoa, Mensagem.
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O progresso

«O progresso, seja o que for, e quer se considere bom, quer mau, é, com certeza, uma alteração, e uma alteração envolve o abandono de certos hábitos, de certos costumes, de certas normas e atitudes que por serem velhas, se tornaram queridas, e, por serem usuais, se tornaram necessárias. A alteração chamada progresso in...cide, portanto, quando não sobre os instintos, pelo menos sobre os hábitos dos indivíduos, ou da maioria dos indivíduos que compõem uma sociedade»

- Fernando Pessoa.

"O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo"

"O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada"

- Fernando Pessoa

Uma visão armilar do mundo

O “internacionalismo”, sinónimo de "cosmopolitismo", como “formula typica das sociedades modernas nas suas relações umas com as outras”, é assim definido por Fernando Pessoa:

“Esta palavra internacionalismo que significa? Que o sentimento nacional decahe, dada a maior necessidade de relacionar-se com o estrangeiro, e dado, também, o golpe que nesse sentimento vibra, por sua natureza, o instincto commercialista; que cada nação, aparte isso, passou a ser mais rica dentro de si própria, passou a resumir em si tudo quanto é typico das outras nações, que a vida de cada cidade da Europa (por exemplo) passou a conter em si elementos typicos da vida de todas as outras cidades, não só da Europa, mas de todo o mundo – isto quer pela presença em todas as colonias de naturaes d’essas outras nações, quer pelas constantes relações commerciaes e intellectuaes com essas, quer pela diaria informação jornalistica, espectacular, cinematographica […]” – Sensacionismo e outros ismos, p.190.

“Assim, cada um de nós nasceu doente de toda esta complexidade. Em cada alma giram os volantes de todas as fabricas do mundo, em cada alma passam todos os comboios do globo, todas as grandes avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma das nossas almas. Todas as questões sociaes, todas as grandes preocupações politicas, por pouco que com ellas nos preocupemos, entram no nosso organismo psychico, no ar que respiramos psychicamente, passam para o nosso sangue espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas como qualquer cousa que seja nossa” – Ibid., p.187.

Textos notáveis, cada vez mais actuais. Uma visão armilar do mundo:

umoutroportugal.blogspot.com

arevistaentre.blogspot.com

Portugal, Europa e universalidade em Fernando Pessoa: das vantagens da desnacionalização e algumas ambiguidades



Após o afastamento d’A Águia, Pessoa alimentou pelo menos dois projectos de outras revistas antes do Orpheu: Ibis ou Lusitânia e Europa. Nalgumas notas dispersas para a revista Europa, alude-se à “nova orientação que é preciso tomar”, que reage contra a limitação da mente pela “nacionalidade” e deseja a europeização como forma de dilatar os seus horizontes ao “meio internacional”: “O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma (ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a alma na Europa” [1]. Contudo, nos apontamentos para um Programa para os trabalhos da geração nova, que significativamente retoma o título do projecto e manuscrito destruído por Antero de Quental, Pessoa mostra manter-se fiel ao essencial do espírito dos ensaios anteriores, ao considerar que o objectivo não é meramente elevar o povo “até ao nivel da actual civilização”, mas “leval-o para além della na orientação que ella vae tomar”. Para tal devem-se educar no povo, em paralelo, as qualidades que o capacitam para “produzir civilização contemporanea” e “as que hão de crear civilização futura”, havendo que criar “uma classe culta e agitada pelas idéas modernas, mas transcendendo-as”. A “fraternização com as correntes intelectuais” estrangeiras, mais conformes com a “ideação dos Novos, do que com a tacanhez e mesquinhez dos nossos compatriotas dominantes”, não deve assim consistir num mero mimetismo daquelas, mas antes, como veremos, num incorporá-las como ingredientes da sua própria superação [2].


É precisamente isso que Pessoa assume na corrente literária surgida com Orpheu, para a qual reclama a “originalidade, não relativa, senão absoluta”, de não só englobar mas ainda exceder todas as correntes literárias nacionais, estrangeiras e contemporâneas, manifestando “uma nova forma litteraria, uma nova visão da Realidade e da Vida, uma nova forma de dar expressão ás sensações e aos pensamentos” [3]. Sem rejeitar que, “desde o “saudosismo” de Teixeira de Pascoaes, qualquer cousa de novo, difficil ainda de definir, surgiu em Portugal”, Pessoa considera que “Orpheu” ultrapassa a estreiteza daquele, enquanto “pensamento humano” e “moderno”, na medida em que “não pretende ser senão portuguez”, ao passo que a “escola de “Orpheu”” é original e cosmopolita, “internacionalista por excelência”, fruto “de uma synthese de todas as correntes modernas, e de alguma coisa mais, que lhe é próprio”, residindo aí “o seu maior valor e interesse”. Assumindo semelhanças com o simbolismo, o saudosismo, o cubismo e o futurismo, “a nova escola portugueza é comtudo qualquér cousa mais do que todas essas escolas” [4]. Ao contrário do “regionalismo” da Renascença Portuguesa e do saudosismo, que só evoluiria “intra muros, com matéria apenas lusitana”, havendo perdido “o contacto com a poesia do século, lá de fora”, a “Escola de Lisboa”, “unico centro portuguez onde entrou um grau superior de cosmopolitismo”, “fala em voz alta, para que toda a Europa oiça”, com “uma bagagem de vistas e de attitudes que é a de quem sabe que está creando arte, não para um paiz, mas para uma época e para uma civilização”. Não se nega com isto “um nacionalismo mais largo e verdadeiro” que, em vez de se afastar, “marca o seu logar na civilização contemporânea” [5]. E o lugar que nela ocupa é precisamente o da sua vanguarda, o que confirma o Pessoa de Orpheu rigorosamente fiel, neste aspecto, ao Pessoa d’A Águia. Constatando que o próprio saudosismo levou “até ao seu máximo” e transcendeu o romantismo europeu, embora tardiamente, Pessoa celebra e exorta a que se dilate esse “impulso nacional que até no seu ponto mais baixo passa além do que a Europa fez” e assim “cria, é novo, original, grande, realmente grande!” [6].


A explicação desta só aparente contradição entre nacionalismo e cosmopolitismo é feita pelo próprio autor no esboço de um texto sobre o facto de alguém ligado a uma “theoria […] nacionalista” dirigir Orpheu, revista “de cultura cosmopolita”. Começando por afirmar “a adhesão completa e a manutenção integral” das “suas theorias expostas n’A AGUIA”, ou seja, o “nacionalismo fundamental” presente na convicção de que “o período de máxima vitalidade nacional é aquelle em que uma nação mais se entrega a si própria e á sua alma”, Pessoa distingue “trez generos de nacionalismo”: 1 – o “inferior” é “aquelle que se prende ás tradições nacionaes e é incapaz de se adaptar ás condições civilizacionaes geraes”, estando “sempre em atrazo” em relação a elas (é, em literatura, o caso de “Bocage e dos arcades em geral, até Castilho”); 2 – o “medio” é “aquelle que se prende, não ás tradições, mas á alma directa da nação, aprofundando-a mais ou menos” (o caso de “Bernardim Ribeiro, no seu grau inferior, e de um Teixeira de Pascoaes no seu alto grau”); 3 – o “supremo” é “o que num nacionalismo real integra todos os elementos cosmopolitas” (o de Camões, “no seu grau inferior”, não havendo ainda em Portugal quem represente o “seu alto grau”, como Shakespeare, Goethe e “todos os representantes supremos das culminancias literarias das nações que ahi chegaram”) [7].


Mantendo que “a vida da nacionalidade é a substancia dynamica da vida da civilização”, Pessoa considera, noutro texto, existirem “trez especies de nacionalismo”: 1 – o “nacionalismo tradicionalista”, “que faz consistir a substancia da nacionalidade em qualquer poncto do seu passado, e a vitalidade nacional na continuidade histórica com esse poncto do passado” (seria o caso do Integralismo Lusitano); 2 – o “nacionalismo integral, que consiste em attribuir a uma nação determinados attributos psychicos, na permanencia dos quaes e fidelidade social aos quaes, reside a vitalidade e a consistencia da nacionalidade” (seria o caso de Teixeira de Pascoaes, que diz não se apoiar na “tradição”, mas num “psychismo collectivo concebido como determinado”); 3 – o “nacionalismo synthetico, que consiste em atribuir a uma nacionalidade, como principio de individuação, não uma tradição determinada, nem um psychismo determinadamente tal, mas um modo especial de synthetisar as influencias do jogo civilizacional”. Ao contrário do “nacionalismo integral” de Teixeira de Pascoaes, que supõe existente uma “alma nacional”, para este último tipo de nacionalismo “não há propriamente uma alma nacional”, “apenas uma direcção nacional”. Precisando, num trecho que consideramos decisivo: “Uma nação não tem, como um individuo, uma personalidade psychica que, embora sujeita a alterações e a desvios, permanece, na sua essencia, auto-identica. Uma nação tem apenas, dados os factores inalienaveis de situação geographica, um determinado papel no conjuncto das nações, de que é formada uma civilização” [8].


Assim, se “o nacionalista tradicionalista repelle o presente e o estrangeiro” e o “nacionalista integral repelle o estrangeiro”, já “o nacionalista synthetico acceita um e outro, buscando imprimir o cunho nacional não na matéria, mas na forma, da obra”. Se cada um tem uma razão parcial, só “o nacionalista integral [no que parece um lapso evidente, onde só faz sentido estar “synthetico”] a tem supremamente, porque só elle está em todos os campos ao mesmo tempo” [9]. Sendo o “papel de uma nação forte e civilizada […] imprimir um cunho seu aos elementos civilizacionaes communs a todas as nações do seu tempo”, ou seja, plasmar uma forma sua que sintetize esses múltiplos elementos civilizacionais contemporâneos, e verificando-se que “o conflicto cultural é que produz civilização”, se Portugal está estagnado é porque “temos sido escravos de uma nação estrangeira de cada vez”. A possibilidade de libertação reside assim em abrir-se simultaneamente a várias correntes de influência estrangeira, o que na época passaria por “não eliminar a cultura franceza” mas acrescentar-lhe pelo menos outra “em conflicto com ella”, alemã ou inglesa [10].


Estes esboços de reflexão sobre o sentido de Orpheu e do afastamento d’A Águia e do projecto saudosista-renascentista de Pascoaes, em relação ao qual assinalam uma continuidade em ruptura e mutação, são extremamente importantes, pois mostram uma ideia nova para a saída da decadência e estagnação nacional, alternativa quer à mera europeização proposta por Antero e pela Geração de 70, quer à refontalização na tradição pátria projectada por Pascoaes: trata-se de abrir a nação o mais possível a diferentes e contrastantes influências culturais internacionais para se libertar do domínio exclusivo por uma delas e afinal as aglutinar, sintetizar e transcender numa nova forma civilizacional que, procedente desse impulso sintetizante que seria não a “alma” identitária, mas a “direcção” funcional da nação portuguesa, nasça ao mesmo tempo da própria tensão e acção-reacção interna entre esses díspares elementos culturais, que adiante veremos claramente definidos. É esse o espírito do que Pessoa designa como “nacionalismo cosmopolita” ou “synthetico”, bem expresso no final de um projecto de anúncio de Orpheu: “Comprar ORPHEU é, emfim, ajudar a salvar Portugal da vergonha de não ter tido senão a litteratura portugueza. ORPHEU é todas as litteraturas” [11].


É esse mesmo espírito que Pessoa assume no “sensacionismo”, cujo órgão é Orpheu. Única arte “propria” e “representativa” da sua “epocha”, o sensacionismo seria “uma arte synthese de nações e de ephocas e de artes”, pois Pessoa, consciencializando o que hoje se chama “globalização” eurocêntrica, considera que “a nossa ephoca é typicamente, a grande epocha do internacionalismo”, na qual “aquillo a que se chama civilização agora, pela primeira vez abrange todo o mundo, de norte a sul, de leste a oeste”, na qual “todos os paizes, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez intellectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Asia, a America, a Africa e a Oceania são a Europa, e existem todos na Europa”, uma vez que é a Europa “a fons et origo d’este typo civilizacional, a região civilizada que dá o typo e a direcção a todo o mundo”. O sensacionismo deve colher assim de todas as correntes, aceitando de cada época o que nela haja de “eterno e differente” e rejeitando o que “tenha de proprio, de seu”, considerado como “o limite, a barreira, á sua contribuição para a civilização”. Esta ideia, extremamente fecunda, mostra que o que há a extrair de cada época (e, supostamente, de cada cultura) é o que a leva a transcender as suas características próprias, eternizando-a e universalizando-a. É isso que alimenta o sensacionismo não só de todas as correntes artísticas e literárias, simbolistas, decadentistas, cubistas, futuristas e outras “dynamistas”, genericamente designadas como “whitmanistas”, mas ainda do que houver de melhor e diferente nos múltiplos aspectos e momentos fundamentais da experiência humana, seja o panteísmo, a santidade, a intuição dos homens do Renascimento, a construtividade grega e latina, a harmonia clássica, o egotismo romântico, o misticismo indiano e asiático, a ritualidade esotérica egípcia, o primitivismo africano, o cosmopolitismo americano, o exotismo da Oceânia e o maquinismo europeu… “A verdadeira arte moderna tem de ser maximamente desnacionalizada – accumular dentro de si todas as partes do mundo”, sem perder nada do “esforço das differentes epochas passadas” [12].


“Sensacionismo” é o “resultado d’esta Grande Synthese, d’este Magnum Opus da alchimia espiritual”, que funda “todas as terras”, “tempos” e “artes”. Perante a questão de se esse “genero de arte” é passível de “ser produzido nos grandes centros europeus, nos grandes centros de civilização”, Pessoa responde que não, pois tal arte “é supremamente portugueza”. A razão é que cada povo contribui para a civilização com aquilo de que a sua “índole” é capaz, “em contacto com o typo e direcção geraes d’essa civilização”, e uma arte totalizante e sintética, como o sensacionismo, “só pode ser dada á Europa por um povo cujo caracter seja cosmopolita, e não cuja vida o seja – por um povo cujo caracter seja sensivelmente desnacionalizado, antipatriotico”. É o caso do português, pois nenhum povo “é como o português temperamentalmente desnacionalizado, aberto a todos [sic] as influencias, recebedor fácil de todas as novidades”, inepto para o “misoneismo”, “único povo cosmopolita-nato”. Assim o comprovam as Descobertas, “a única cousa portugueza, typicamente portugueza, que houve em Portugal” e “a obra mais gloriosamente internacional, cosmopolita, e desnacionalizada” que houve na história do mundo. E é por isso que só agora, na única “epocha cosmopolita”, que é o tempo presente, pode haver literatura ou arte portuguesa. Pessoa termina assim sob o mesmo signo com que encerra os ensaios sobre a “nova poesia portuguesa” n’A Águia: se aí proclama, com o advento da nova síntese civilizacional implícita no “transcendentalismo panteísta”, a partida da “Raça” “em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço”, cumprindo “divinamente” o seu “verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo” [13], proclama agora ter chegado enfim a “Hora da Raça”, porém a “hora espiritual”, pois a “material” passou com a chegada de Vasco da Gama a Calecut. Se aí se enterrou “o destino material da Raça” [14], esta morte histórica de Portugal no apogeu da sua obra civilizacional exterior - semelhante, por outra via, ao “salto para fora da história” que Oliveira Martins adverte no sebastianismo - , é todavia a condição de possibilidade da sua ressurreição a outro nível, como um sopro espiritual e cultural animador de um novo ciclo civilizacional. É apenas na medida em que Portugal se desterritorializar e passar “a ser não propriamente um determinado país, […] mas sim uma ideia a difundir pelo mundo”, como o diz Agostinho da Silva a propósito de Vieira [15], que se pode cumprir plenamente o impulso paradoxal que Pessoa assinala e assume como a sua verdadeira característica específica: a de perder toda a especificidade e característica própria para se converter na síntese do melhor e mais universal de todas as configurações do humano, em todas as culturas, tempos e lugares.


Este Portugal-movimento-para-o-Universo, este Portugal-(des)feito-Universo, não deixa todavia de incorrer nalgumas ambiguidades, decorrentes até da própria teoria pessoana, que, como vimos, recusa uma visão identitária da nação, negando que haja uma “alma nacional”, com “personalidade psychica” tal como os indivíduos [16]. Perguntamo-nos assim o que são este “Portugal” e esta “Raça” que se movem para o universal, qual o seu estatuto ontológico e existencial, e se isto não será ainda nacionalizar, ainda que para imediatamente e em última instância sacrificar essa mesma nacionalização, algo que porventura só no íntimo processo da consciência individual se pode realizar, embora o meio cultural possa ser mais ou menos convidativo e favorável a isso. A questão prende-se, quanto a nós, com o excessivo lugar que Pessoa ainda confere à “vida da nacionalidade”, identificando-a como “a substancia dynamica da vida da civilização” [17]e esquecendo que na verdade a vida da nação não existe senão enraizada nessa vida dos indivíduos e dos grupos que sempre, e sobretudo no mundo globalizado em que vivemos, extravasa dos limites da vida nacional e é susceptível de configurações e dinâmicas infra e supranacionais, irredutíveis mesmo a espaços de afinidades histórico-culturais e linguísticas entre várias nações. Mesmo nesta apologia de um Portugal desterritorializado e expatriado, Pessoa permanece ainda refém, como Agostinho da Silva, de uma última forma de messianismo nacionalista ou patriótico, ao afirmar Portugal como a única nação que tem como missão deixar de o ser para se converter no próprio universal… Este messianismo nacionalista-patriótico latente e reiterado na cultura portuguesa é algo que tem de ser crítica e rigorosamente ponderado, pois dá azo, na melhor hipótese, a toda a espécie de ingénuos erros de óptica e, na pior, a todo o tipo de perversos aproveitamentos, manipulações e instrumentalizações político-ideológicas. E as duas hipóteses tendem a acompanhar-se. A verdadeira sabedoria consiste porém no discernimento capaz de, sem nos enredarmos nestas seduções, sermos ao mesmo tempo capazes de colher todo o proveito de um meio cultural favorável ao universalismo como é manifestamente, no seu melhor, o português.


1] Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, Edição crítica de Fernando Pessoa, X, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p.29.
[2] Cf. Ibid., pp.29-31.
[3] Cf. Ibid., pp.46-47.
[4] Cf. Ibid., p.49.
[5] Cf. Ibid., pp.58-59.
[6] Cf. Ibid., pp.59 e 61.
[7] Cf. Ibid., pp.66-67.
[8] Cf. Ibid., pp.67-68.
[9] Cf. Ibid., p.68. Cf. p.471, onde Jerónimo Pizarro adverte o possível “lapso”.
[10] Cf. Ibid., pp.68-69.
[11] Cf. Ibid., p.70.
[12] Cf. Ibid., pp.75-76.
[13] Cf. Id., “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”, Obras, II, organização, introduções e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão, 1986, pp.1194-1195.
[14] Cf. Id., Sensacionismo e outros ismos, p.77.
[15] Agostinho da Silva, Reflexão, Lisboa, Guimarães Editores, s.d., p.104.
[16] Cf. Ibid., p.68.
[17] Cf. Ibid., p.67.

"[...] os portugueses típicos nunca são portugueses"; "Nenhum povo se despersonaliza de modo tão magnificente"

"The Portuguese Sensationists are original and interesting because, being strictly Portuguese, they are cosmopolitan and universal. The Portuguese temperament is universal: that is its magnificent superiority. The one great act of Portuguese history - that long, cautious, scientific period of the Discoveries - is the one great cosmopolitan act in history. The whole people stamp themselves there. An original, typically Portuguese literature cannot be Portuguese, because the typical Portuguese are never Portuguese. There is something American, with the noise left out and the quotidian omitted, in the intellecrtual temper of this people. No people seizes so readily on novelties. No people depersonalises so magnificently. That weakness is its great strength. That temperamental nonregionalism is its unused might. That indefiniteness of soul is what makes them definite"

- Fernando Pessoa, in Sensacionismo e outros ismos, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2009, pp.218-219.

Palavras a ponderar, depurativas do provincianismo identitário, ainda que não plenamente livres dele...

O regresso em nós de D. Sebastião ou o fim do sebastianismo



D. Sebastião

Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

O segundo poema que tem como título “D. Sebastião” é o primeiro dos cinco “Símbolos” que abrem a terceira parte, “O Encoberto”, da Mensagem. Nele o poeta volta a dar voz a um rei que – falando sempre como esse ser “que há” e não “que houve”, ou seja, como imortal dotado da “grandeza” de ser livre da “Sorte” - exorta a que esperem pelo seu regresso aqueles que ainda permanecem escravos da comum condição mortal e humana, reproduzindo a sua submissão ao Destino enquanto cadáveres adiados que procriam. D. Sebastião continua a ser aqui, numa coerência rigorosa, a figura de um rei-Outro, de uma consciência desperta que exorta os que esperam o seu regresso ao mundo dos homens a que não esperem que regresse o mesmo que partiu. Efectivamente, tendo-se convertido No que se sonhou, tendo-se tornado Naquele que se desejou, um ser emancipado do Destino, e sendo isso “eterno”, não pode senão ser “Esse” que regressará. Não faz sentido assim que o esperem com uma expectativa adequada ao que foi e já não é nem poderá nunca mais ser, não faz sentido que o esperem com a predominante esperança sebastianista que sobrevive à possibilidade do regresso físico do rei desaparecido em Alcácer-Quibir e se converte num paradigma da mentalidade portuguesa em épocas de crise e profunda insatisfação, fruto da laicização da expectativa messiânica: a expectativa de que surja um mero líder político, redentor da pátria oprimida e decadente, restaurador da ordem ameaçada e condutor da nação em períodos de crise da identidade e sentido da sua vida histórica. O D. Sebastião de Pessoa exorta a que o esperem, mas não como o Mesmo, antes como Outro, não como mortal, antes como imortal.


D. Sebastião exorta ao fim do sebastianismo comum, recordando que o seu fracasso humano, pessoal e histórico não foi senão o reverso do divino dom de uma oportunidade superior a todo o triunfo bélico e a todo o poder e glória temporais. Caindo “no areal e na hora adversa”, segundo a percepção mundana e exterior, D. Sebastião na verdade acedeu ao “intervalo” da imersão da “alma” “em sonhos que são Deus”, concedido pelo divino aos “seus”, ou seja, aos que o buscam acima de tudo, aos seus “amigos”.


O que são este “intervalo”, esta imersão e estes “sonhos que são Deus”? “Intervalo”, do latim intervallum, é o espaço ou distância entre dois pontos ou lugares, que etimologicamente são duas paliçadas ou trincheiras (vallum), também com o sentido de baluartes, defesas, protecções. O “intervalo”, ainda segundo um dos sentidos da palavra latina, sugere-se como o repouso ou descanso da “alma” em algo que não a pré-ocupa com a construção de limites e muros autoprotectores, o repouso ou descanso da “alma” relativamente a toda a pré-ocupação, mental, emocional ou física, com a separação entre uma coisa e outra, a divisão entre si e o outro, a defesa e o ataque, a dualidade, o medo e a (in)segurança. Livre de tudo isso, é no intervalo disso tudo, na “pausa” (outro sentido do intervallum latino) de toda essa agitação, que se pode abrir e absorver plenamente “em sonhos que são Deus”. Ou seja, no contexto da Mensagem, viver a “loucura” daquela ânsia de “grandeza” trans-mundana e transcensão de toda a “Sorte”/condição mortal que se converte nisso e é já isso mesmo a que ardentemente aspira. O desejo veemente dessa “grandeza” insuperável é já a vibrante e imanente epifania do divino. Como escreve Pessoa no poema “D. Fernando. Infante de Portugal”: “E esta febre de Além, que me consome, / E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a vibrar”. É isso que torna o sujeito “cheio de Deus” e é isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar, já em vida, de ser a “besta sadia” e “cadáver adiado que procria”, vergado pelas indomadas “forças cegas” ao triste contentamento com a vida doméstica e vegetativa. É isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar do tempo dos quatro impérios e operar a sua superação no Quinto, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” (cf. o poema “O Quinto Império”), que evidentemente nada tem a ver com qualquer domínio mundano, temporal e político. Do mesmo modo que em D. Sebastião o ser “que há” transcende o “que houve”, assim também o Quinto Império transcende o plano onde decorrem e se dissipam os quatro, não podendo propriamente dizer-se que venha temporalmente após eles, enquanto símbolo de uma possibilidade que transcende o tempo e o espaço e que é a própria possibilidade do homem ou da consciência se imortalizar.


A alma de D. Sebastião está pois “imersa / Em sonhos que são Deus”. O que é, todavia, “Deus”? A palavra procede da raiz indo-europeia dei, que significa “tudo o que brilha”, donde vem o sânscrito deva (deus), o iraniano daeva (demónio) e o português dia [1]. Deus indica não um ser ou um ente, algo que exista e possa ser objecto, algo que possa ser visto por alguém, mas antes a própria luz invisível que torna todas as coisas visíveis, em termos inteligíveis ou sensíveis, o ilimitado espaço luminoso que é matriz de todas as possibilidades de manifestação e consciência, o nada inerente ao aparecimento de tudo [2](* cf . também o "nada que é de tudo" em Agostinho da Silva). É aí que verdadeiramente cai, imerge e reside o D. Sebastião transfigurado, que realiza a suma potencialidade de todo o homem. É nisso que se guarda, baluarte sem defesas e assim inexpugnável pela derrota no “areal”, “a morte e a desventura”. É Isso, afinal, que se sonhou e tornou, num sonho/desejo/imaginação criadora (ou desveladora) que converte o amante na coisa amada (cf. Luís de Camões), que realiza isso que imagina, em tudo distinto daquele sonho ilusório e irreal que preside à história do mundo e dos homens e à sucessão dos quatro impérios mundanos. “O” que se sonhou, esse “Deus”/matriz intemporal de toda a manifestação, transcende a consciência temporal e a sua ilusão intrínseca, sendo da ordem do eterno. É só “Esse” que D. Sebastião pode regressar, não o rei humano morto ou desaparecido no areal, ou um seu substituto, mitificado pelo sebastianismo e esperado pelos sebastianistas de todos os tempos, mas o sujeito transfigurado em Deus, dei-ficado, ou seja, iluminado. Desperto e livre, em nada se distingue desse espaço primordial, anterior a todas as coisas e de todas envolvente como a matriz que as possibilita, mas que, na experiência mundana e condicionada, apenas se abre nos inter-valos entre uma coisa e outra, entes, pensamentos, palavras e acções.


Cabe a este respeito recordar um fundamental poema inglês de Pessoa, “The King of Gaps”, “O Rei das fendas/brechas,/aberturas/hiatos/lacunas/vazios/intervalos/abismos”, que muito ajuda a compreender o “intervalo” em que está imerso o D. Sebastião pessoano. Este “rei desconhecido”, senhor de um “estranho Reino dos Vazios” com o qual coincide, figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o intervalar e não entificado espaço vazio que se desvela entre as entidades, o fundo informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-seres”. Se num sentido parece assumir a função de um Mesmo indiferenciado, perante o qual tudo o que nele se delimita surge como as múltiplas formas da sua alteridade, ou se noutro sentido podemos pensá-lo como o Outro enquanto transcende e envolve todas as formas do mesmo, num outro sentido podemos reconhecer-lhe uma transcensão mais radical, tanto do mesmo como do outro, tanto do idêntico como do diferente, na medida em que estes se constituam no âmbito de uma relação mútua entre formas e entidades que só se torna possível por haver esse espaço não-entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que permite a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado.


Seja como for, é Nisso que imerge D. Sebastião e é Isso/Esse que anuncia regressar. Este segundo poema dedicado a D. Sebastião confirma a transfiguração do herói épico e trágico, malogrado protagonista histórico, num intemporal avatar espiritual, qual Bodhisattva ou Redentor gnóstico que, desperto e iluminado, se dirige aos homens, pela voz de Pessoa, seu poeta-profeta, ensinando-lhes já a necessidade de transformação da sua esperança quanto ao seu futuro regresso para junto deles, que tudo indica nada ter a ver com uma redenção política e temporal, mas antes com o exercício de um magistério espiritual que não visa senão conduzi-los ao mesmo estado livre e desperto, à mesma libertação da “Sorte”, à mesma ressurreição, dei-ficação ou iluminação.


Esta é uma possibilidade de leitura, que não contradiz outra, mais funda e acalentada pelo próprio Pessoa, em que o regresso de D. Sebastião, como é aliás mais adequado a uma potência espiritual, não é tanto exterior quanto interior, podendo dar-se a qualquer momento em todo o homem que evoque em si o mesmo que D. Sebastião evocou. D. Sebastião, ou seja, uma potência espiritual desperta e livre do espaço e do tempo, regressa efectivamente em todo aquele que deseje a mesma libertação da “Sorte” e se afunde no mesmo “intervalo” divino, na mesma luminosa matriz primordial de todas as coisas [3]. Que isto seja susceptível de uma expressão colectiva, adverte-o também Pessoa, ao dizer do “mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa”: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião” [4].


Regressará, em nós, D. Sebastião, mas, fundamental não o esquecer, Outro, jamais o mesmo. O que implica que, em nós, o mesmo morra e deixe aparecer o Outro.


Assim se desencobre o Encoberto. O que reside entre cada coisa, pensamento, palavra e acção



[1] Cf. Odon Vallet, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.
[2] Cf. Jean-Yves Leloup, “Notre Père”, Paris, Albin Michel, 2007, pp.173-174.
[3] É isso que salientamos neste texto decisivo: “A metempsicose. A alma é imortal e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim, morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e a alma dela entrará para a forma que evocámos. Por isso quando houverdes criado uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D. Sebastião, D. Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal. Um acontecimento é um homem, ou um espírito sob forma impessoal” – Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1979, p.196.
[4] Cf. Ibid., p.255.

A loucura de D. Sebastião



D. Sebastião
Rei de Portugal


Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura, que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

O primeiro dos dois poemas que têm como título “D. Sebastião” constitui a quinta quina do “Brasão” português, a primeira parte da Mensagem, que interpreta o simbolismo heráldico das armas nacionais e convida a relacionar esta quinta quina/D.Sebastião com o Quinto Império. O poema dá voz ao rei assumindo a loucura de que foi acusado, mas dando-lhe outra razão que não a da patologia ou insensatez. A sua loucura consistiu em querer “grandeza / Qual a Sorte a não dá”. “Sorte”, sobretudo com maiúscula, parece ter aqui o sentido de Destino, Fado ou Fortuna, e não tanto de acaso. A “Sorte” é a necessidade que rege o universo e à qual nem os deuses escapam (cf. Moira, Ananke, Heimarmene), subordinando todos os entes à impermanência universal e às vicissitudes dos lugares, ora superiores, ora inferiores, que ocupam no mundo, e às experiências, ora felizes, ora infelizes, que nele conhecem.

Esta “Sorte” evoca o tema arcaico, antigo e medieval da Roda da Fortuna ou do samsara, presente no Oriente e no Ocidente. Pessoa refere-se várias vezes, na sua poesia, a este tema, falando por exemplo da “roda universal da Sorte” e relacionando-a, significativamente, com a “ficção”, “sonho” ou ilusão universal que faz ao sujeito supor-se na existência o mortal que afinal não é. A loucura de D. Sebastião consistiu assim, não propriamente na temeridade da aventura africana ou no ideal supostamente anacrónico que a moveu, mas antes no haver desejado, num e para além de um acto heróico dificilmente justificável pela razão humana, uma “grandeza” que não pode ser dada (e retirada) pela Sorte. Que “grandeza” pode ser essa senão a transcensão e libertação da própria “Sorte”, a transcensão e libertação da Roda da Fortuna ou do samsara, a suprema aspiração humana? Ou seja, se recordarmos a interpretação do poema “Quinto Império”, a transcensão e libertação do próprio sonho/ilusão que preside aos “quatro / tempos” do movimento do mundo, imperando sobre a consciência e a vida mediante as “forças cegas” que dominam a “alma” enquanto uma “visão” desperta e livre as não domar. Neste sentido, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” é o próprio fim da ilusão que preside ao destino do mundo, o fim do regime de consciência adormecida, onírica e iludida figurado, em termos históricos, pela sucessão dos quatro impérios: Grécia, Roma, Cristandade, Europa. A “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” é o próprio Quinto Império, como figura do Outro desse regime de consciência que há que transcender: não tanto uma nova soberania mundial, assente na parcialidade de uma dada cultura, ordem jurídica, concepção moral e religiosa ou cosmopolitismo comercial, mas antes o Despertar da falsa pretensão à universalidade de todas essas ilusões, o Despertar dessas e de todas as ilusões, o Despertar da ilusão universal que preside à consciência, ao tempo e à história dos homens.

O D. Sebastião histórico é claramente transfigurado num protagonista da loucura, da boa hybris ou desmesura, que deseja a suma e insuperável “grandeza” do Despertar enquanto libertação da falsa realidade de todas as supostas condições da existência no mundo. É a “certeza” dessa possibilidade que natural e necessariamente não cabe em si, pois haver um “si” é ser ou supor-se algo ou alguém no mundo, é estar situado e logo limitado, submetido e determinado na cadeia e teia de causalidade da ordem universal. São essa loucura e essa “certeza” que afinal o fazem sair de si e o ilimitam, levando-o a trespassar e transcender a própria condição humana e mortal, assegurando-lhe a transfiguração que lhe confere um outro modo de ser, actual e imortal, que nada tem a ver com o “ser que houve”, tornado um cadáver jacente no “areal” de Alcácer-Quibir. O D. Sebastião a que Pessoa dá voz já não é a pessoa do rei histórico, desaparecido em Alcácer-Quibir em termos reais e simbólicos, mas antes a consciência desperta e imortal emergente do soçobro daquele ser humano e mortal.

É ela que agora nos fala a partir de um estado transcendente e liberto, exortando-nos a assumirmos a sua “loucura”, “com o que nela ia”, o desejo de transcender a “Sorte”, como o seu mais precioso legado. Somos nós esses “outros” que podemos assumir o exemplo libertador do rei transfigurado assumindo a sua “loucura” transcendente, iluminativa, libertadora. Pois sem isso, recorda, que somos nós, “que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. Ou seja, sem a loucura que visa transcender a condição mortal de todo o ente, não só não cumprimos o pleno potencial da nossa própria humanidade, como nem sequer a exercemos, mantendo-nos num patamar de infra-humanidade e numa vida falsa que mais não é senão morte que se adia enquanto, pior ainda, se reproduz noutros cadáveres adiados fabricados pela mentalidade familiar, escolar e socialmente dominante. Como dizem Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva: “Só há homem quando se faz o impossível”. Ou seja, aqui, a transcensão da própria condição humana.

Ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é afinal, se regressarmos ao poema “O Quinto Império”, permanecer na “apagada e vil tristeza” (Luís de Camões) de uma vida doméstica autosatisfeita, sem “sonho” e voo para mais além, ou na felicidade vegetativa de uma vida já sepulta. Como antídoto disso, a “loucura” de D. Sebastião é o descontentamento que leva o homem a cumprir-se domando as “forças cegas” “pela visão que a alma tem”. Deixar de ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é despertar e libertar-se desse regime de ilusão e autogratificação medíocre que preside à “noite” do mundo e ao seu tempo dos quatro impérios que evanescem julgando-se eternos: “Grécia, Roma, Cristandade, / Europa”. Deixar de ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é “viver a verdade / Que morreu D. Sebastião”, ou seja, cumprir a suma possibilidade da condição humana: a sua própria transcensão, a imortalidade. É esse o sentido mais fundo e amplo do Quinto Império, a soberania do Despertar libertador.

"[...] a verdade / Que morreu D. Sebastião"



(quadro atribuído a Cristóvão de Morais)

Publico aqui a continuidade de um texto anterior, de comentário ao poema inicial da Mensagem de Pessoa: "O dos Castelos".

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.

O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.

O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.

Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.

Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.

(texto em formulação e a continuar)

Portugal, o nevoeiro, o caos e a Hora

"Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!"

- Fernando Pessoa, "Nevoeiro", Mensagem.

"Um caos é somente essa desordem de onde um mundo pode surgir"

- Friedrich Schlegel, Ideias, 71.

Já não pertencemos ao que foi nem ao que é e mal pressentimos o que vem, o que surge do mais íntimo. Este é o tempo mais difícil e mais pleno.

Comemorações dos 75 anos da "Mensagem" de Fernando Pessoa




TERÇA (Feriado) 1 DEZ.09 17H30

Biblioteca Nacional de Portugal

Sessão Comemorativa

Palavras de Abertura

Jorge Couto (Director-Geral, BNP)
Paula Morão (Directora- Geral, DGLB)
Catarina Vaz Pinto (Vereadora da Cultura, CML)

Comunicação

Eduardo Lourenço

Poemas da “Mensagem” na voz do actor Luís Lucas

I. DEBATE

Pessoa e o sonho do supra-Camões

Moderado por Carlos Vaz Marques com a presença de:

Eduardo Lourenço
Manuel Alegre
Vasco Graça Moura

Lançamento da edição da “Mensagem” clonada do original de Fernando Pessoa

Apresentação:

Jorge Couto (Director da BNP)
Paulo Teixeira Pinto (Guimarães Editores)
David Ferreira (FNAC Portugal)

QUARTA 2 DEZ.09 18H30

FNAC Chiado

II. Debate

“- É a hora!” O sentido da “Mensagem”

Moderado por Carlos Vaz Marques com a presença de:

Paulo Borges
Manuel Gandra
Miguel Real

QUA. 9 DEZ.09 18H30

Casa Fernando Pessoa

III. Debate

“Mensagem”, o Poema, o Prémio e o Estado Novo

Moderado por Carlos Vaz Marques com a presença de:

José Blanco
Richard Zenith
José Carlos Seabra Pereira

Portugal, Europa e Ocidente: o enigma do "olhar esfíngico e fatal" e o rapto de Europa



Ticiano, O rapto de Europa

“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal”

- Fernando Pessoa, “O dos Castelos”, Mensagem.

É com este poema que Fernando Pessoa abre a Mensagem, cujo nome cifra o dizer latino: Mens ag(itat) (mol)em – o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão. O presente poema deve pois ser considerado como o primeiro momento disso que todo o livro pretende e anuncia ser: mover e orientar numa determinada direcção a massa passiva e inconsciente das coisas e/ou da mole humana, o que supõe nesta a potencialidade de deixar de o ser, despertando do sono que a equipara à matéria e pondo-se a caminho de um estado superior de consciência.

De quem fala o poema e o que diz? O poema fala da Europa, figurada, de acordo com as sugestões do seu mapa, como um ser, decerto feminino, que “de Oriente a Ocidente” se deita, apoiado “nos cotovelos”, “fitando”, ou seja, olhando fixamente para um alvo diante de si. Um dos cotovelos pousa na Itália e o outro na Inglaterra, sendo este que sustenta a mão “em que se apoia o rosto”, onde a moldura romântica dos cabelos evoca “olhos gregos”. Esse rosto, “o rosto com que fita”, “é Portugal”, o finistérreo extremo-ocidente europeu, voltado para o Oceano.

Recordemos a mitologia acerca de Europa, mulher fenícia de Tiro, cujo nome, do grego, sugere etimologicamente a imagem de um rosto ou visão amplos (ευρυ-, largo, amplo, e οπ-, olho(s), rosto). Nas duas versões acerca do seu destino, na mais conhecida é seduzida por Zeus transformado em touro, o qual, após haver conquistado a sua confiança, subitamente a rapta e leva pelo mar para Creta, onde se une com ela. Dessa união nascerá o rei Minos. Noutra versão, narrada por Heródoto, Europa é sequestrada pelos minóicos e levada igualmente para Creta.

Notemos que a Europa é, curiosamente, uma figura não indo-europeia, pois os fenícios, segundo Heródoto, provêm do Oceano Índico, enquanto que, segundo a moderna historiografia, procedem de uma região entre o Mar Morto e o Mar Vermelho. O seu nome significa em grego “vermelho” e pode provir da cor da sua pele (Agostinho da Silva refere-os como os “pele-vermelhas”. Foram uma grande potência marítima, um povo de viajantes, que fez um trânsito de Oriente para Ocidente. Quanto ao mito do rapto de Europa, sugere-nos a essência do seu destino como o de ser seduzida, descentrada, arrebatada ao seu lugar original por uma potência divina que a fecunda. Isto em Creta, lugar de mediação entre Oriente e Ocidente, entre as raízes arcaicas, matriarcais e não indo-europeias da futura cultura europeia, e o seu futuro bélico prefigurado nos invasores aqueus indo-europeus. Creta, lugar perigoso do labirinto, da errância por várias possibilidades de destino, mas com uma única saída salvadora. Lugar do risco de se ser devorado pelo Minotauro e da possibilidade de saída libertadora pelo encontro do fio de Ariana.

Portugal, com a sua larga costa voltada para o Oceano, sugerindo um perfil contemplando o infinito, é assim na verdade não apenas o rosto da Europa, mas esse mesmo “rosto” ou “visão” amplos que diz o nome Europa. Portugal é a essência da Europa, a essência que em si contêm e encerra as complexas possibilidades que no mito se entrecruzam e entremostram: a ponte e mediação entre Oriente e Ocidente, entre o arcaico e o novo, a sedução pela alteridade, o rapto, o arrebatamento e a fecundação pelo divino, a labiríntica errância entre perdição e salvação e o rosto/visão ampla que é, simultaneamente, limite e limiar, limite que se pode converter em limiar.

O que fita então esse rosto-Portugal/Europa e como o fitam os seus “olhos gregos”, que agora supomos serem cretenses? O seu “olhar esfíngico e fatal” fita “o Ocidente, futuro do passado”. Uma esfinge é um monstro, com um corpo misto de vários animais e rosto humano, como no Egipto e na Grécia, enquanto um “olhar esfíngico e fatal” é um olhar que expressa um enigma sempre letal, pois estrangula (sphingo) e devora quem não o decifrar, ao mesmo tempo que se suicida caso a decifração aconteça, como no Édipo Rei, de Sófocles. A mulher fenícia é então uma Esfinge e Portugal o rosto humano desse monstro, que se estende de Oriente a Ocidente contemplando fixamente o Ocidente/Oceano. O Ocidente, do latim occidens, entis, é o particípio presente do verbo occidere, o qual, se for intransitivo, significa morrer e, se for transitivo, significa matar. O Ocidente é assim o lugar onde se morre ou se é morto, como acontece com o sol que aparentemente aí declina e desaparece. Esse lugar é também o Oceano, o Okeanos que os gregos visionavam como o grande rio caótico e turbilhonante que corria circularmente em torno do mundo. Em qualquer dos casos, o Ocidente e o Oceano, para além da sua determinação geográfica, assinalam o aparente limite da terra firme do conhecimento e da vida, figurado na linha igualmente aparente do horizonte, cuja etimologia grega (orizón) designa “o que limita”. É isso o “futuro do passado” e é isso que a Europa-Esfinge, que “jaz […] / De Oriente a Ocidente”, amplamente “fita” com o rosto-Portugal.

Este confronto configura uma situação-limite, na qual uma das instâncias do confronto – Portugal, rosto-essência da Europa, e o Ocidente/Oceano, “futuro do passado” – não pode sobreviver. O rosto-Portugal fita, ou seja, foca unidireccionadamente, concentrando toda a energia do desejo numa visão intensa, isso que está diante de si, esse Ocidente/Oceano/Horizonte ignoto que é o “futuro” desse “passado”-Europa que Portugal ainda é, porém já na condição anfíbia de finistérrea ponta extrema, lançada para o alvo da alteridade absoluta, irredutível a qualquer identidade europeia, ocidental ou outra. Rosto humano da monstruosa Esfinge-Europa, que aqui pode figurar todo o próprio “passado” euroasiático da história do mundo, ou tudo o que ela mesma aspira a ultra-passar em si, Portugal figura o descentramento da história, da vida e da consciência europeia, e/ou da própria consciência, para o desenlace crucial do morrer ou matar que no Oceano/Ocidente se simboliza. Portugal incarna, no rosto/visão amplos descentrados para a alteridade infinita, a própria essência da Europa, ou seja, a sua sedução, rapto e arrebatamento jamais terminados e apaziguados, a própria condição da sua divina fecundação e criatividade.

Não esqueçamos que neste quadro da Europa que abre a Mensagem se destacam explícita e implicitamente os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais que Pessoa identifica nos quatro impérios “passados” e perecíveis cuja superação o Quinto Império simboliza: “E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou. // Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / para onde vai toda idade. / Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (“O Quinto Império”). No poema inaugural da Mensagem, a Grécia está representada pelos “olhos gregos”, Roma e a Cristandade pela Itália e a Europa por si mesma e pela Inglaterra, que personifica o quarto império noutros textos, em prosa, de Pessoa.

O mais fundo enigma reside, contudo, no facto de Portugal ser o “rosto”-“olhar esfíngico e fatal” com que a Europa fita o Ocidente. O que quer dizer que o enigma mortal não está propriamente diante, no Ocidente/Oceano, mas antes nesse que os fita. Portugal, como rosto-essência da Europa, é o próprio esfíngico enigma que, numa inesperada inversão da situação aparente, é suposto ser também contemplado pelo Ocidente/Oceano. Quem levará quem à morte? Paralisará e devorará Portugal, rosto-essência da Europa, o Ocidente/Oceano, caso este não decifre o enigma que transporta? Porá Portugal, rosto-essência da Europa, fim à vida, caso o Ocidente-Oceano o decifre? Morrerá o futuro e a alteridade às mãos do passado e do mesmo ou serão antes estes a perecer perante aqueles?

Toda a lógica e intencionalidade da Mensagem e do pensamento pessoano apontam para a segunda possibilidade. E tudo se esclarece se considerarmos que em Portugal se figura a impossível coexistência das duas figuras e a encruzilhada crucial na qual uma tem de ser sacrificada. Talvez seja precisamente esse o enigma. Tudo depende do que vai predominar em Portugal - que Pessoa vê como a quinta-essência do complexo de possibilidades que é a própria Europa - e, a um nível mais fundo, na possibilidade universal do homem e da consciência que Portugal aqui figura (como Israel, a Cristandade ou o Islão nas respectivas culturas): ou a asfixia e deglutição da adveniente alteridade pela monstruosa mesmidade passada ou o autocolapso desta no desentranhamento e desvendamento do secreto fito a que no mais íntimo aspira - morrer e devir, autotranscender-se trespassando a linha do horizonte e revelando a sua mera aparência, converter e revelar o limite como limiar. Ou o quarto ou o Quinto Império, como consumação do íntimo fito da consciência europeia e da própria consciência, tanto mais comprovado quanto mais aparente e visceralmente o rejeita: ser, agora e sempre, divinamente seduzida, raptada, arrebatada e enfim fecundada.

Labirinto que é, talvez só nesse rapto, só nesse abandono e entrega à alteridade absoluta, possa encontrar o fio de Ariana que a resgate de morrer devorada pelo Minotauro, ou seja, autodevorada pelo próprio medo e desejo de segurança agressivos que este, tal como a Esfinge, personificam.

(texto em elaboração)

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O progresso

«O progresso, seja o que for, e quer se considere bom, quer mau, é, com certeza, uma alteração, e uma alteração envolve o abandono de certos hábitos, de certos costumes, de certas normas e atitudes que por serem velhas, se tornaram queridas, e, por serem usuais, se tornaram necessárias. A alteração chamada progresso in...cide, portanto, quando não sobre os instintos, pelo menos sobre os hábitos dos indivíduos, ou da maioria dos indivíduos que compõem uma sociedade»

- Fernando Pessoa.

"O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo"

"O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada"

- Fernando Pessoa

Uma visão armilar do mundo

O “internacionalismo”, sinónimo de "cosmopolitismo", como “formula typica das sociedades modernas nas suas relações umas com as outras”, é assim definido por Fernando Pessoa:

“Esta palavra internacionalismo que significa? Que o sentimento nacional decahe, dada a maior necessidade de relacionar-se com o estrangeiro, e dado, também, o golpe que nesse sentimento vibra, por sua natureza, o instincto commercialista; que cada nação, aparte isso, passou a ser mais rica dentro de si própria, passou a resumir em si tudo quanto é typico das outras nações, que a vida de cada cidade da Europa (por exemplo) passou a conter em si elementos typicos da vida de todas as outras cidades, não só da Europa, mas de todo o mundo – isto quer pela presença em todas as colonias de naturaes d’essas outras nações, quer pelas constantes relações commerciaes e intellectuaes com essas, quer pela diaria informação jornalistica, espectacular, cinematographica […]” – Sensacionismo e outros ismos, p.190.

“Assim, cada um de nós nasceu doente de toda esta complexidade. Em cada alma giram os volantes de todas as fabricas do mundo, em cada alma passam todos os comboios do globo, todas as grandes avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma das nossas almas. Todas as questões sociaes, todas as grandes preocupações politicas, por pouco que com ellas nos preocupemos, entram no nosso organismo psychico, no ar que respiramos psychicamente, passam para o nosso sangue espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas como qualquer cousa que seja nossa” – Ibid., p.187.

Textos notáveis, cada vez mais actuais. Uma visão armilar do mundo:

umoutroportugal.blogspot.com

arevistaentre.blogspot.com

Portugal, Europa e universalidade em Fernando Pessoa: das vantagens da desnacionalização e algumas ambiguidades



Após o afastamento d’A Águia, Pessoa alimentou pelo menos dois projectos de outras revistas antes do Orpheu: Ibis ou Lusitânia e Europa. Nalgumas notas dispersas para a revista Europa, alude-se à “nova orientação que é preciso tomar”, que reage contra a limitação da mente pela “nacionalidade” e deseja a europeização como forma de dilatar os seus horizontes ao “meio internacional”: “O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma (ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a alma na Europa” [1]. Contudo, nos apontamentos para um Programa para os trabalhos da geração nova, que significativamente retoma o título do projecto e manuscrito destruído por Antero de Quental, Pessoa mostra manter-se fiel ao essencial do espírito dos ensaios anteriores, ao considerar que o objectivo não é meramente elevar o povo “até ao nivel da actual civilização”, mas “leval-o para além della na orientação que ella vae tomar”. Para tal devem-se educar no povo, em paralelo, as qualidades que o capacitam para “produzir civilização contemporanea” e “as que hão de crear civilização futura”, havendo que criar “uma classe culta e agitada pelas idéas modernas, mas transcendendo-as”. A “fraternização com as correntes intelectuais” estrangeiras, mais conformes com a “ideação dos Novos, do que com a tacanhez e mesquinhez dos nossos compatriotas dominantes”, não deve assim consistir num mero mimetismo daquelas, mas antes, como veremos, num incorporá-las como ingredientes da sua própria superação [2].


É precisamente isso que Pessoa assume na corrente literária surgida com Orpheu, para a qual reclama a “originalidade, não relativa, senão absoluta”, de não só englobar mas ainda exceder todas as correntes literárias nacionais, estrangeiras e contemporâneas, manifestando “uma nova forma litteraria, uma nova visão da Realidade e da Vida, uma nova forma de dar expressão ás sensações e aos pensamentos” [3]. Sem rejeitar que, “desde o “saudosismo” de Teixeira de Pascoaes, qualquer cousa de novo, difficil ainda de definir, surgiu em Portugal”, Pessoa considera que “Orpheu” ultrapassa a estreiteza daquele, enquanto “pensamento humano” e “moderno”, na medida em que “não pretende ser senão portuguez”, ao passo que a “escola de “Orpheu”” é original e cosmopolita, “internacionalista por excelência”, fruto “de uma synthese de todas as correntes modernas, e de alguma coisa mais, que lhe é próprio”, residindo aí “o seu maior valor e interesse”. Assumindo semelhanças com o simbolismo, o saudosismo, o cubismo e o futurismo, “a nova escola portugueza é comtudo qualquér cousa mais do que todas essas escolas” [4]. Ao contrário do “regionalismo” da Renascença Portuguesa e do saudosismo, que só evoluiria “intra muros, com matéria apenas lusitana”, havendo perdido “o contacto com a poesia do século, lá de fora”, a “Escola de Lisboa”, “unico centro portuguez onde entrou um grau superior de cosmopolitismo”, “fala em voz alta, para que toda a Europa oiça”, com “uma bagagem de vistas e de attitudes que é a de quem sabe que está creando arte, não para um paiz, mas para uma época e para uma civilização”. Não se nega com isto “um nacionalismo mais largo e verdadeiro” que, em vez de se afastar, “marca o seu logar na civilização contemporânea” [5]. E o lugar que nela ocupa é precisamente o da sua vanguarda, o que confirma o Pessoa de Orpheu rigorosamente fiel, neste aspecto, ao Pessoa d’A Águia. Constatando que o próprio saudosismo levou “até ao seu máximo” e transcendeu o romantismo europeu, embora tardiamente, Pessoa celebra e exorta a que se dilate esse “impulso nacional que até no seu ponto mais baixo passa além do que a Europa fez” e assim “cria, é novo, original, grande, realmente grande!” [6].


A explicação desta só aparente contradição entre nacionalismo e cosmopolitismo é feita pelo próprio autor no esboço de um texto sobre o facto de alguém ligado a uma “theoria […] nacionalista” dirigir Orpheu, revista “de cultura cosmopolita”. Começando por afirmar “a adhesão completa e a manutenção integral” das “suas theorias expostas n’A AGUIA”, ou seja, o “nacionalismo fundamental” presente na convicção de que “o período de máxima vitalidade nacional é aquelle em que uma nação mais se entrega a si própria e á sua alma”, Pessoa distingue “trez generos de nacionalismo”: 1 – o “inferior” é “aquelle que se prende ás tradições nacionaes e é incapaz de se adaptar ás condições civilizacionaes geraes”, estando “sempre em atrazo” em relação a elas (é, em literatura, o caso de “Bocage e dos arcades em geral, até Castilho”); 2 – o “medio” é “aquelle que se prende, não ás tradições, mas á alma directa da nação, aprofundando-a mais ou menos” (o caso de “Bernardim Ribeiro, no seu grau inferior, e de um Teixeira de Pascoaes no seu alto grau”); 3 – o “supremo” é “o que num nacionalismo real integra todos os elementos cosmopolitas” (o de Camões, “no seu grau inferior”, não havendo ainda em Portugal quem represente o “seu alto grau”, como Shakespeare, Goethe e “todos os representantes supremos das culminancias literarias das nações que ahi chegaram”) [7].


Mantendo que “a vida da nacionalidade é a substancia dynamica da vida da civilização”, Pessoa considera, noutro texto, existirem “trez especies de nacionalismo”: 1 – o “nacionalismo tradicionalista”, “que faz consistir a substancia da nacionalidade em qualquer poncto do seu passado, e a vitalidade nacional na continuidade histórica com esse poncto do passado” (seria o caso do Integralismo Lusitano); 2 – o “nacionalismo integral, que consiste em attribuir a uma nação determinados attributos psychicos, na permanencia dos quaes e fidelidade social aos quaes, reside a vitalidade e a consistencia da nacionalidade” (seria o caso de Teixeira de Pascoaes, que diz não se apoiar na “tradição”, mas num “psychismo collectivo concebido como determinado”); 3 – o “nacionalismo synthetico, que consiste em atribuir a uma nacionalidade, como principio de individuação, não uma tradição determinada, nem um psychismo determinadamente tal, mas um modo especial de synthetisar as influencias do jogo civilizacional”. Ao contrário do “nacionalismo integral” de Teixeira de Pascoaes, que supõe existente uma “alma nacional”, para este último tipo de nacionalismo “não há propriamente uma alma nacional”, “apenas uma direcção nacional”. Precisando, num trecho que consideramos decisivo: “Uma nação não tem, como um individuo, uma personalidade psychica que, embora sujeita a alterações e a desvios, permanece, na sua essencia, auto-identica. Uma nação tem apenas, dados os factores inalienaveis de situação geographica, um determinado papel no conjuncto das nações, de que é formada uma civilização” [8].


Assim, se “o nacionalista tradicionalista repelle o presente e o estrangeiro” e o “nacionalista integral repelle o estrangeiro”, já “o nacionalista synthetico acceita um e outro, buscando imprimir o cunho nacional não na matéria, mas na forma, da obra”. Se cada um tem uma razão parcial, só “o nacionalista integral [no que parece um lapso evidente, onde só faz sentido estar “synthetico”] a tem supremamente, porque só elle está em todos os campos ao mesmo tempo” [9]. Sendo o “papel de uma nação forte e civilizada […] imprimir um cunho seu aos elementos civilizacionaes communs a todas as nações do seu tempo”, ou seja, plasmar uma forma sua que sintetize esses múltiplos elementos civilizacionais contemporâneos, e verificando-se que “o conflicto cultural é que produz civilização”, se Portugal está estagnado é porque “temos sido escravos de uma nação estrangeira de cada vez”. A possibilidade de libertação reside assim em abrir-se simultaneamente a várias correntes de influência estrangeira, o que na época passaria por “não eliminar a cultura franceza” mas acrescentar-lhe pelo menos outra “em conflicto com ella”, alemã ou inglesa [10].


Estes esboços de reflexão sobre o sentido de Orpheu e do afastamento d’A Águia e do projecto saudosista-renascentista de Pascoaes, em relação ao qual assinalam uma continuidade em ruptura e mutação, são extremamente importantes, pois mostram uma ideia nova para a saída da decadência e estagnação nacional, alternativa quer à mera europeização proposta por Antero e pela Geração de 70, quer à refontalização na tradição pátria projectada por Pascoaes: trata-se de abrir a nação o mais possível a diferentes e contrastantes influências culturais internacionais para se libertar do domínio exclusivo por uma delas e afinal as aglutinar, sintetizar e transcender numa nova forma civilizacional que, procedente desse impulso sintetizante que seria não a “alma” identitária, mas a “direcção” funcional da nação portuguesa, nasça ao mesmo tempo da própria tensão e acção-reacção interna entre esses díspares elementos culturais, que adiante veremos claramente definidos. É esse o espírito do que Pessoa designa como “nacionalismo cosmopolita” ou “synthetico”, bem expresso no final de um projecto de anúncio de Orpheu: “Comprar ORPHEU é, emfim, ajudar a salvar Portugal da vergonha de não ter tido senão a litteratura portugueza. ORPHEU é todas as litteraturas” [11].


É esse mesmo espírito que Pessoa assume no “sensacionismo”, cujo órgão é Orpheu. Única arte “propria” e “representativa” da sua “epocha”, o sensacionismo seria “uma arte synthese de nações e de ephocas e de artes”, pois Pessoa, consciencializando o que hoje se chama “globalização” eurocêntrica, considera que “a nossa ephoca é typicamente, a grande epocha do internacionalismo”, na qual “aquillo a que se chama civilização agora, pela primeira vez abrange todo o mundo, de norte a sul, de leste a oeste”, na qual “todos os paizes, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez intellectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Asia, a America, a Africa e a Oceania são a Europa, e existem todos na Europa”, uma vez que é a Europa “a fons et origo d’este typo civilizacional, a região civilizada que dá o typo e a direcção a todo o mundo”. O sensacionismo deve colher assim de todas as correntes, aceitando de cada época o que nela haja de “eterno e differente” e rejeitando o que “tenha de proprio, de seu”, considerado como “o limite, a barreira, á sua contribuição para a civilização”. Esta ideia, extremamente fecunda, mostra que o que há a extrair de cada época (e, supostamente, de cada cultura) é o que a leva a transcender as suas características próprias, eternizando-a e universalizando-a. É isso que alimenta o sensacionismo não só de todas as correntes artísticas e literárias, simbolistas, decadentistas, cubistas, futuristas e outras “dynamistas”, genericamente designadas como “whitmanistas”, mas ainda do que houver de melhor e diferente nos múltiplos aspectos e momentos fundamentais da experiência humana, seja o panteísmo, a santidade, a intuição dos homens do Renascimento, a construtividade grega e latina, a harmonia clássica, o egotismo romântico, o misticismo indiano e asiático, a ritualidade esotérica egípcia, o primitivismo africano, o cosmopolitismo americano, o exotismo da Oceânia e o maquinismo europeu… “A verdadeira arte moderna tem de ser maximamente desnacionalizada – accumular dentro de si todas as partes do mundo”, sem perder nada do “esforço das differentes epochas passadas” [12].


“Sensacionismo” é o “resultado d’esta Grande Synthese, d’este Magnum Opus da alchimia espiritual”, que funda “todas as terras”, “tempos” e “artes”. Perante a questão de se esse “genero de arte” é passível de “ser produzido nos grandes centros europeus, nos grandes centros de civilização”, Pessoa responde que não, pois tal arte “é supremamente portugueza”. A razão é que cada povo contribui para a civilização com aquilo de que a sua “índole” é capaz, “em contacto com o typo e direcção geraes d’essa civilização”, e uma arte totalizante e sintética, como o sensacionismo, “só pode ser dada á Europa por um povo cujo caracter seja cosmopolita, e não cuja vida o seja – por um povo cujo caracter seja sensivelmente desnacionalizado, antipatriotico”. É o caso do português, pois nenhum povo “é como o português temperamentalmente desnacionalizado, aberto a todos [sic] as influencias, recebedor fácil de todas as novidades”, inepto para o “misoneismo”, “único povo cosmopolita-nato”. Assim o comprovam as Descobertas, “a única cousa portugueza, typicamente portugueza, que houve em Portugal” e “a obra mais gloriosamente internacional, cosmopolita, e desnacionalizada” que houve na história do mundo. E é por isso que só agora, na única “epocha cosmopolita”, que é o tempo presente, pode haver literatura ou arte portuguesa. Pessoa termina assim sob o mesmo signo com que encerra os ensaios sobre a “nova poesia portuguesa” n’A Águia: se aí proclama, com o advento da nova síntese civilizacional implícita no “transcendentalismo panteísta”, a partida da “Raça” “em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço”, cumprindo “divinamente” o seu “verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo” [13], proclama agora ter chegado enfim a “Hora da Raça”, porém a “hora espiritual”, pois a “material” passou com a chegada de Vasco da Gama a Calecut. Se aí se enterrou “o destino material da Raça” [14], esta morte histórica de Portugal no apogeu da sua obra civilizacional exterior - semelhante, por outra via, ao “salto para fora da história” que Oliveira Martins adverte no sebastianismo - , é todavia a condição de possibilidade da sua ressurreição a outro nível, como um sopro espiritual e cultural animador de um novo ciclo civilizacional. É apenas na medida em que Portugal se desterritorializar e passar “a ser não propriamente um determinado país, […] mas sim uma ideia a difundir pelo mundo”, como o diz Agostinho da Silva a propósito de Vieira [15], que se pode cumprir plenamente o impulso paradoxal que Pessoa assinala e assume como a sua verdadeira característica específica: a de perder toda a especificidade e característica própria para se converter na síntese do melhor e mais universal de todas as configurações do humano, em todas as culturas, tempos e lugares.


Este Portugal-movimento-para-o-Universo, este Portugal-(des)feito-Universo, não deixa todavia de incorrer nalgumas ambiguidades, decorrentes até da própria teoria pessoana, que, como vimos, recusa uma visão identitária da nação, negando que haja uma “alma nacional”, com “personalidade psychica” tal como os indivíduos [16]. Perguntamo-nos assim o que são este “Portugal” e esta “Raça” que se movem para o universal, qual o seu estatuto ontológico e existencial, e se isto não será ainda nacionalizar, ainda que para imediatamente e em última instância sacrificar essa mesma nacionalização, algo que porventura só no íntimo processo da consciência individual se pode realizar, embora o meio cultural possa ser mais ou menos convidativo e favorável a isso. A questão prende-se, quanto a nós, com o excessivo lugar que Pessoa ainda confere à “vida da nacionalidade”, identificando-a como “a substancia dynamica da vida da civilização” [17]e esquecendo que na verdade a vida da nação não existe senão enraizada nessa vida dos indivíduos e dos grupos que sempre, e sobretudo no mundo globalizado em que vivemos, extravasa dos limites da vida nacional e é susceptível de configurações e dinâmicas infra e supranacionais, irredutíveis mesmo a espaços de afinidades histórico-culturais e linguísticas entre várias nações. Mesmo nesta apologia de um Portugal desterritorializado e expatriado, Pessoa permanece ainda refém, como Agostinho da Silva, de uma última forma de messianismo nacionalista ou patriótico, ao afirmar Portugal como a única nação que tem como missão deixar de o ser para se converter no próprio universal… Este messianismo nacionalista-patriótico latente e reiterado na cultura portuguesa é algo que tem de ser crítica e rigorosamente ponderado, pois dá azo, na melhor hipótese, a toda a espécie de ingénuos erros de óptica e, na pior, a todo o tipo de perversos aproveitamentos, manipulações e instrumentalizações político-ideológicas. E as duas hipóteses tendem a acompanhar-se. A verdadeira sabedoria consiste porém no discernimento capaz de, sem nos enredarmos nestas seduções, sermos ao mesmo tempo capazes de colher todo o proveito de um meio cultural favorável ao universalismo como é manifestamente, no seu melhor, o português.


1] Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, Edição crítica de Fernando Pessoa, X, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p.29.
[2] Cf. Ibid., pp.29-31.
[3] Cf. Ibid., pp.46-47.
[4] Cf. Ibid., p.49.
[5] Cf. Ibid., pp.58-59.
[6] Cf. Ibid., pp.59 e 61.
[7] Cf. Ibid., pp.66-67.
[8] Cf. Ibid., pp.67-68.
[9] Cf. Ibid., p.68. Cf. p.471, onde Jerónimo Pizarro adverte o possível “lapso”.
[10] Cf. Ibid., pp.68-69.
[11] Cf. Ibid., p.70.
[12] Cf. Ibid., pp.75-76.
[13] Cf. Id., “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”, Obras, II, organização, introduções e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão, 1986, pp.1194-1195.
[14] Cf. Id., Sensacionismo e outros ismos, p.77.
[15] Agostinho da Silva, Reflexão, Lisboa, Guimarães Editores, s.d., p.104.
[16] Cf. Ibid., p.68.
[17] Cf. Ibid., p.67.

"[...] os portugueses típicos nunca são portugueses"; "Nenhum povo se despersonaliza de modo tão magnificente"

"The Portuguese Sensationists are original and interesting because, being strictly Portuguese, they are cosmopolitan and universal. The Portuguese temperament is universal: that is its magnificent superiority. The one great act of Portuguese history - that long, cautious, scientific period of the Discoveries - is the one great cosmopolitan act in history. The whole people stamp themselves there. An original, typically Portuguese literature cannot be Portuguese, because the typical Portuguese are never Portuguese. There is something American, with the noise left out and the quotidian omitted, in the intellecrtual temper of this people. No people seizes so readily on novelties. No people depersonalises so magnificently. That weakness is its great strength. That temperamental nonregionalism is its unused might. That indefiniteness of soul is what makes them definite"

- Fernando Pessoa, in Sensacionismo e outros ismos, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2009, pp.218-219.

Palavras a ponderar, depurativas do provincianismo identitário, ainda que não plenamente livres dele...

O regresso em nós de D. Sebastião ou o fim do sebastianismo



D. Sebastião

Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

O segundo poema que tem como título “D. Sebastião” é o primeiro dos cinco “Símbolos” que abrem a terceira parte, “O Encoberto”, da Mensagem. Nele o poeta volta a dar voz a um rei que – falando sempre como esse ser “que há” e não “que houve”, ou seja, como imortal dotado da “grandeza” de ser livre da “Sorte” - exorta a que esperem pelo seu regresso aqueles que ainda permanecem escravos da comum condição mortal e humana, reproduzindo a sua submissão ao Destino enquanto cadáveres adiados que procriam. D. Sebastião continua a ser aqui, numa coerência rigorosa, a figura de um rei-Outro, de uma consciência desperta que exorta os que esperam o seu regresso ao mundo dos homens a que não esperem que regresse o mesmo que partiu. Efectivamente, tendo-se convertido No que se sonhou, tendo-se tornado Naquele que se desejou, um ser emancipado do Destino, e sendo isso “eterno”, não pode senão ser “Esse” que regressará. Não faz sentido assim que o esperem com uma expectativa adequada ao que foi e já não é nem poderá nunca mais ser, não faz sentido que o esperem com a predominante esperança sebastianista que sobrevive à possibilidade do regresso físico do rei desaparecido em Alcácer-Quibir e se converte num paradigma da mentalidade portuguesa em épocas de crise e profunda insatisfação, fruto da laicização da expectativa messiânica: a expectativa de que surja um mero líder político, redentor da pátria oprimida e decadente, restaurador da ordem ameaçada e condutor da nação em períodos de crise da identidade e sentido da sua vida histórica. O D. Sebastião de Pessoa exorta a que o esperem, mas não como o Mesmo, antes como Outro, não como mortal, antes como imortal.


D. Sebastião exorta ao fim do sebastianismo comum, recordando que o seu fracasso humano, pessoal e histórico não foi senão o reverso do divino dom de uma oportunidade superior a todo o triunfo bélico e a todo o poder e glória temporais. Caindo “no areal e na hora adversa”, segundo a percepção mundana e exterior, D. Sebastião na verdade acedeu ao “intervalo” da imersão da “alma” “em sonhos que são Deus”, concedido pelo divino aos “seus”, ou seja, aos que o buscam acima de tudo, aos seus “amigos”.


O que são este “intervalo”, esta imersão e estes “sonhos que são Deus”? “Intervalo”, do latim intervallum, é o espaço ou distância entre dois pontos ou lugares, que etimologicamente são duas paliçadas ou trincheiras (vallum), também com o sentido de baluartes, defesas, protecções. O “intervalo”, ainda segundo um dos sentidos da palavra latina, sugere-se como o repouso ou descanso da “alma” em algo que não a pré-ocupa com a construção de limites e muros autoprotectores, o repouso ou descanso da “alma” relativamente a toda a pré-ocupação, mental, emocional ou física, com a separação entre uma coisa e outra, a divisão entre si e o outro, a defesa e o ataque, a dualidade, o medo e a (in)segurança. Livre de tudo isso, é no intervalo disso tudo, na “pausa” (outro sentido do intervallum latino) de toda essa agitação, que se pode abrir e absorver plenamente “em sonhos que são Deus”. Ou seja, no contexto da Mensagem, viver a “loucura” daquela ânsia de “grandeza” trans-mundana e transcensão de toda a “Sorte”/condição mortal que se converte nisso e é já isso mesmo a que ardentemente aspira. O desejo veemente dessa “grandeza” insuperável é já a vibrante e imanente epifania do divino. Como escreve Pessoa no poema “D. Fernando. Infante de Portugal”: “E esta febre de Além, que me consome, / E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a vibrar”. É isso que torna o sujeito “cheio de Deus” e é isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar, já em vida, de ser a “besta sadia” e “cadáver adiado que procria”, vergado pelas indomadas “forças cegas” ao triste contentamento com a vida doméstica e vegetativa. É isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar do tempo dos quatro impérios e operar a sua superação no Quinto, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” (cf. o poema “O Quinto Império”), que evidentemente nada tem a ver com qualquer domínio mundano, temporal e político. Do mesmo modo que em D. Sebastião o ser “que há” transcende o “que houve”, assim também o Quinto Império transcende o plano onde decorrem e se dissipam os quatro, não podendo propriamente dizer-se que venha temporalmente após eles, enquanto símbolo de uma possibilidade que transcende o tempo e o espaço e que é a própria possibilidade do homem ou da consciência se imortalizar.


A alma de D. Sebastião está pois “imersa / Em sonhos que são Deus”. O que é, todavia, “Deus”? A palavra procede da raiz indo-europeia dei, que significa “tudo o que brilha”, donde vem o sânscrito deva (deus), o iraniano daeva (demónio) e o português dia [1]. Deus indica não um ser ou um ente, algo que exista e possa ser objecto, algo que possa ser visto por alguém, mas antes a própria luz invisível que torna todas as coisas visíveis, em termos inteligíveis ou sensíveis, o ilimitado espaço luminoso que é matriz de todas as possibilidades de manifestação e consciência, o nada inerente ao aparecimento de tudo [2](* cf . também o "nada que é de tudo" em Agostinho da Silva). É aí que verdadeiramente cai, imerge e reside o D. Sebastião transfigurado, que realiza a suma potencialidade de todo o homem. É nisso que se guarda, baluarte sem defesas e assim inexpugnável pela derrota no “areal”, “a morte e a desventura”. É Isso, afinal, que se sonhou e tornou, num sonho/desejo/imaginação criadora (ou desveladora) que converte o amante na coisa amada (cf. Luís de Camões), que realiza isso que imagina, em tudo distinto daquele sonho ilusório e irreal que preside à história do mundo e dos homens e à sucessão dos quatro impérios mundanos. “O” que se sonhou, esse “Deus”/matriz intemporal de toda a manifestação, transcende a consciência temporal e a sua ilusão intrínseca, sendo da ordem do eterno. É só “Esse” que D. Sebastião pode regressar, não o rei humano morto ou desaparecido no areal, ou um seu substituto, mitificado pelo sebastianismo e esperado pelos sebastianistas de todos os tempos, mas o sujeito transfigurado em Deus, dei-ficado, ou seja, iluminado. Desperto e livre, em nada se distingue desse espaço primordial, anterior a todas as coisas e de todas envolvente como a matriz que as possibilita, mas que, na experiência mundana e condicionada, apenas se abre nos inter-valos entre uma coisa e outra, entes, pensamentos, palavras e acções.


Cabe a este respeito recordar um fundamental poema inglês de Pessoa, “The King of Gaps”, “O Rei das fendas/brechas,/aberturas/hiatos/lacunas/vazios/intervalos/abismos”, que muito ajuda a compreender o “intervalo” em que está imerso o D. Sebastião pessoano. Este “rei desconhecido”, senhor de um “estranho Reino dos Vazios” com o qual coincide, figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o intervalar e não entificado espaço vazio que se desvela entre as entidades, o fundo informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-seres”. Se num sentido parece assumir a função de um Mesmo indiferenciado, perante o qual tudo o que nele se delimita surge como as múltiplas formas da sua alteridade, ou se noutro sentido podemos pensá-lo como o Outro enquanto transcende e envolve todas as formas do mesmo, num outro sentido podemos reconhecer-lhe uma transcensão mais radical, tanto do mesmo como do outro, tanto do idêntico como do diferente, na medida em que estes se constituam no âmbito de uma relação mútua entre formas e entidades que só se torna possível por haver esse espaço não-entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que permite a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado.


Seja como for, é Nisso que imerge D. Sebastião e é Isso/Esse que anuncia regressar. Este segundo poema dedicado a D. Sebastião confirma a transfiguração do herói épico e trágico, malogrado protagonista histórico, num intemporal avatar espiritual, qual Bodhisattva ou Redentor gnóstico que, desperto e iluminado, se dirige aos homens, pela voz de Pessoa, seu poeta-profeta, ensinando-lhes já a necessidade de transformação da sua esperança quanto ao seu futuro regresso para junto deles, que tudo indica nada ter a ver com uma redenção política e temporal, mas antes com o exercício de um magistério espiritual que não visa senão conduzi-los ao mesmo estado livre e desperto, à mesma libertação da “Sorte”, à mesma ressurreição, dei-ficação ou iluminação.


Esta é uma possibilidade de leitura, que não contradiz outra, mais funda e acalentada pelo próprio Pessoa, em que o regresso de D. Sebastião, como é aliás mais adequado a uma potência espiritual, não é tanto exterior quanto interior, podendo dar-se a qualquer momento em todo o homem que evoque em si o mesmo que D. Sebastião evocou. D. Sebastião, ou seja, uma potência espiritual desperta e livre do espaço e do tempo, regressa efectivamente em todo aquele que deseje a mesma libertação da “Sorte” e se afunde no mesmo “intervalo” divino, na mesma luminosa matriz primordial de todas as coisas [3]. Que isto seja susceptível de uma expressão colectiva, adverte-o também Pessoa, ao dizer do “mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa”: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião” [4].


Regressará, em nós, D. Sebastião, mas, fundamental não o esquecer, Outro, jamais o mesmo. O que implica que, em nós, o mesmo morra e deixe aparecer o Outro.


Assim se desencobre o Encoberto. O que reside entre cada coisa, pensamento, palavra e acção



[1] Cf. Odon Vallet, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.
[2] Cf. Jean-Yves Leloup, “Notre Père”, Paris, Albin Michel, 2007, pp.173-174.
[3] É isso que salientamos neste texto decisivo: “A metempsicose. A alma é imortal e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim, morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e a alma dela entrará para a forma que evocámos. Por isso quando houverdes criado uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D. Sebastião, D. Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal. Um acontecimento é um homem, ou um espírito sob forma impessoal” – Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1979, p.196.
[4] Cf. Ibid., p.255.

A loucura de D. Sebastião



D. Sebastião
Rei de Portugal


Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura, que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

O primeiro dos dois poemas que têm como título “D. Sebastião” constitui a quinta quina do “Brasão” português, a primeira parte da Mensagem, que interpreta o simbolismo heráldico das armas nacionais e convida a relacionar esta quinta quina/D.Sebastião com o Quinto Império. O poema dá voz ao rei assumindo a loucura de que foi acusado, mas dando-lhe outra razão que não a da patologia ou insensatez. A sua loucura consistiu em querer “grandeza / Qual a Sorte a não dá”. “Sorte”, sobretudo com maiúscula, parece ter aqui o sentido de Destino, Fado ou Fortuna, e não tanto de acaso. A “Sorte” é a necessidade que rege o universo e à qual nem os deuses escapam (cf. Moira, Ananke, Heimarmene), subordinando todos os entes à impermanência universal e às vicissitudes dos lugares, ora superiores, ora inferiores, que ocupam no mundo, e às experiências, ora felizes, ora infelizes, que nele conhecem.

Esta “Sorte” evoca o tema arcaico, antigo e medieval da Roda da Fortuna ou do samsara, presente no Oriente e no Ocidente. Pessoa refere-se várias vezes, na sua poesia, a este tema, falando por exemplo da “roda universal da Sorte” e relacionando-a, significativamente, com a “ficção”, “sonho” ou ilusão universal que faz ao sujeito supor-se na existência o mortal que afinal não é. A loucura de D. Sebastião consistiu assim, não propriamente na temeridade da aventura africana ou no ideal supostamente anacrónico que a moveu, mas antes no haver desejado, num e para além de um acto heróico dificilmente justificável pela razão humana, uma “grandeza” que não pode ser dada (e retirada) pela Sorte. Que “grandeza” pode ser essa senão a transcensão e libertação da própria “Sorte”, a transcensão e libertação da Roda da Fortuna ou do samsara, a suprema aspiração humana? Ou seja, se recordarmos a interpretação do poema “Quinto Império”, a transcensão e libertação do próprio sonho/ilusão que preside aos “quatro / tempos” do movimento do mundo, imperando sobre a consciência e a vida mediante as “forças cegas” que dominam a “alma” enquanto uma “visão” desperta e livre as não domar. Neste sentido, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” é o próprio fim da ilusão que preside ao destino do mundo, o fim do regime de consciência adormecida, onírica e iludida figurado, em termos históricos, pela sucessão dos quatro impérios: Grécia, Roma, Cristandade, Europa. A “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” é o próprio Quinto Império, como figura do Outro desse regime de consciência que há que transcender: não tanto uma nova soberania mundial, assente na parcialidade de uma dada cultura, ordem jurídica, concepção moral e religiosa ou cosmopolitismo comercial, mas antes o Despertar da falsa pretensão à universalidade de todas essas ilusões, o Despertar dessas e de todas as ilusões, o Despertar da ilusão universal que preside à consciência, ao tempo e à história dos homens.

O D. Sebastião histórico é claramente transfigurado num protagonista da loucura, da boa hybris ou desmesura, que deseja a suma e insuperável “grandeza” do Despertar enquanto libertação da falsa realidade de todas as supostas condições da existência no mundo. É a “certeza” dessa possibilidade que natural e necessariamente não cabe em si, pois haver um “si” é ser ou supor-se algo ou alguém no mundo, é estar situado e logo limitado, submetido e determinado na cadeia e teia de causalidade da ordem universal. São essa loucura e essa “certeza” que afinal o fazem sair de si e o ilimitam, levando-o a trespassar e transcender a própria condição humana e mortal, assegurando-lhe a transfiguração que lhe confere um outro modo de ser, actual e imortal, que nada tem a ver com o “ser que houve”, tornado um cadáver jacente no “areal” de Alcácer-Quibir. O D. Sebastião a que Pessoa dá voz já não é a pessoa do rei histórico, desaparecido em Alcácer-Quibir em termos reais e simbólicos, mas antes a consciência desperta e imortal emergente do soçobro daquele ser humano e mortal.

É ela que agora nos fala a partir de um estado transcendente e liberto, exortando-nos a assumirmos a sua “loucura”, “com o que nela ia”, o desejo de transcender a “Sorte”, como o seu mais precioso legado. Somos nós esses “outros” que podemos assumir o exemplo libertador do rei transfigurado assumindo a sua “loucura” transcendente, iluminativa, libertadora. Pois sem isso, recorda, que somos nós, “que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. Ou seja, sem a loucura que visa transcender a condição mortal de todo o ente, não só não cumprimos o pleno potencial da nossa própria humanidade, como nem sequer a exercemos, mantendo-nos num patamar de infra-humanidade e numa vida falsa que mais não é senão morte que se adia enquanto, pior ainda, se reproduz noutros cadáveres adiados fabricados pela mentalidade familiar, escolar e socialmente dominante. Como dizem Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva: “Só há homem quando se faz o impossível”. Ou seja, aqui, a transcensão da própria condição humana.

Ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é afinal, se regressarmos ao poema “O Quinto Império”, permanecer na “apagada e vil tristeza” (Luís de Camões) de uma vida doméstica autosatisfeita, sem “sonho” e voo para mais além, ou na felicidade vegetativa de uma vida já sepulta. Como antídoto disso, a “loucura” de D. Sebastião é o descontentamento que leva o homem a cumprir-se domando as “forças cegas” “pela visão que a alma tem”. Deixar de ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é despertar e libertar-se desse regime de ilusão e autogratificação medíocre que preside à “noite” do mundo e ao seu tempo dos quatro impérios que evanescem julgando-se eternos: “Grécia, Roma, Cristandade, / Europa”. Deixar de ser “besta sadia, / Cadáver adiado que procria”, é “viver a verdade / Que morreu D. Sebastião”, ou seja, cumprir a suma possibilidade da condição humana: a sua própria transcensão, a imortalidade. É esse o sentido mais fundo e amplo do Quinto Império, a soberania do Despertar libertador.

"[...] a verdade / Que morreu D. Sebastião"



(quadro atribuído a Cristóvão de Morais)

Publico aqui a continuidade de um texto anterior, de comentário ao poema inicial da Mensagem de Pessoa: "O dos Castelos".

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.

O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.

O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.

Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.

Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.

(texto em formulação e a continuar)

Portugal, o nevoeiro, o caos e a Hora

"Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!"

- Fernando Pessoa, "Nevoeiro", Mensagem.

"Um caos é somente essa desordem de onde um mundo pode surgir"

- Friedrich Schlegel, Ideias, 71.

Já não pertencemos ao que foi nem ao que é e mal pressentimos o que vem, o que surge do mais íntimo. Este é o tempo mais difícil e mais pleno.

Comemorações dos 75 anos da "Mensagem" de Fernando Pessoa




TERÇA (Feriado) 1 DEZ.09 17H30

Biblioteca Nacional de Portugal

Sessão Comemorativa

Palavras de Abertura

Jorge Couto (Director-Geral, BNP)
Paula Morão (Directora- Geral, DGLB)
Catarina Vaz Pinto (Vereadora da Cultura, CML)

Comunicação

Eduardo Lourenço

Poemas da “Mensagem” na voz do actor Luís Lucas

I. DEBATE

Pessoa e o sonho do supra-Camões

Moderado por Carlos Vaz Marques com a presença de:

Eduardo Lourenço
Manuel Alegre
Vasco Graça Moura

Lançamento da edição da “Mensagem” clonada do original de Fernando Pessoa

Apresentação:

Jorge Couto (Director da BNP)
Paulo Teixeira Pinto (Guimarães Editores)
David Ferreira (FNAC Portugal)

QUARTA 2 DEZ.09 18H30

FNAC Chiado

II. Debate

“- É a hora!” O sentido da “Mensagem”

Moderado por Carlos Vaz Marques com a presença de:

Paulo Borges
Manuel Gandra
Miguel Real

QUA. 9 DEZ.09 18H30

Casa Fernando Pessoa

III. Debate

“Mensagem”, o Poema, o Prémio e o Estado Novo

Moderado por Carlos Vaz Marques com a presença de:

José Blanco
Richard Zenith
José Carlos Seabra Pereira

Portugal, Europa e Ocidente: o enigma do "olhar esfíngico e fatal" e o rapto de Europa



Ticiano, O rapto de Europa

“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal”

- Fernando Pessoa, “O dos Castelos”, Mensagem.

É com este poema que Fernando Pessoa abre a Mensagem, cujo nome cifra o dizer latino: Mens ag(itat) (mol)em – o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão. O presente poema deve pois ser considerado como o primeiro momento disso que todo o livro pretende e anuncia ser: mover e orientar numa determinada direcção a massa passiva e inconsciente das coisas e/ou da mole humana, o que supõe nesta a potencialidade de deixar de o ser, despertando do sono que a equipara à matéria e pondo-se a caminho de um estado superior de consciência.

De quem fala o poema e o que diz? O poema fala da Europa, figurada, de acordo com as sugestões do seu mapa, como um ser, decerto feminino, que “de Oriente a Ocidente” se deita, apoiado “nos cotovelos”, “fitando”, ou seja, olhando fixamente para um alvo diante de si. Um dos cotovelos pousa na Itália e o outro na Inglaterra, sendo este que sustenta a mão “em que se apoia o rosto”, onde a moldura romântica dos cabelos evoca “olhos gregos”. Esse rosto, “o rosto com que fita”, “é Portugal”, o finistérreo extremo-ocidente europeu, voltado para o Oceano.

Recordemos a mitologia acerca de Europa, mulher fenícia de Tiro, cujo nome, do grego, sugere etimologicamente a imagem de um rosto ou visão amplos (ευρυ-, largo, amplo, e οπ-, olho(s), rosto). Nas duas versões acerca do seu destino, na mais conhecida é seduzida por Zeus transformado em touro, o qual, após haver conquistado a sua confiança, subitamente a rapta e leva pelo mar para Creta, onde se une com ela. Dessa união nascerá o rei Minos. Noutra versão, narrada por Heródoto, Europa é sequestrada pelos minóicos e levada igualmente para Creta.

Notemos que a Europa é, curiosamente, uma figura não indo-europeia, pois os fenícios, segundo Heródoto, provêm do Oceano Índico, enquanto que, segundo a moderna historiografia, procedem de uma região entre o Mar Morto e o Mar Vermelho. O seu nome significa em grego “vermelho” e pode provir da cor da sua pele (Agostinho da Silva refere-os como os “pele-vermelhas”. Foram uma grande potência marítima, um povo de viajantes, que fez um trânsito de Oriente para Ocidente. Quanto ao mito do rapto de Europa, sugere-nos a essência do seu destino como o de ser seduzida, descentrada, arrebatada ao seu lugar original por uma potência divina que a fecunda. Isto em Creta, lugar de mediação entre Oriente e Ocidente, entre as raízes arcaicas, matriarcais e não indo-europeias da futura cultura europeia, e o seu futuro bélico prefigurado nos invasores aqueus indo-europeus. Creta, lugar perigoso do labirinto, da errância por várias possibilidades de destino, mas com uma única saída salvadora. Lugar do risco de se ser devorado pelo Minotauro e da possibilidade de saída libertadora pelo encontro do fio de Ariana.

Portugal, com a sua larga costa voltada para o Oceano, sugerindo um perfil contemplando o infinito, é assim na verdade não apenas o rosto da Europa, mas esse mesmo “rosto” ou “visão” amplos que diz o nome Europa. Portugal é a essência da Europa, a essência que em si contêm e encerra as complexas possibilidades que no mito se entrecruzam e entremostram: a ponte e mediação entre Oriente e Ocidente, entre o arcaico e o novo, a sedução pela alteridade, o rapto, o arrebatamento e a fecundação pelo divino, a labiríntica errância entre perdição e salvação e o rosto/visão ampla que é, simultaneamente, limite e limiar, limite que se pode converter em limiar.

O que fita então esse rosto-Portugal/Europa e como o fitam os seus “olhos gregos”, que agora supomos serem cretenses? O seu “olhar esfíngico e fatal” fita “o Ocidente, futuro do passado”. Uma esfinge é um monstro, com um corpo misto de vários animais e rosto humano, como no Egipto e na Grécia, enquanto um “olhar esfíngico e fatal” é um olhar que expressa um enigma sempre letal, pois estrangula (sphingo) e devora quem não o decifrar, ao mesmo tempo que se suicida caso a decifração aconteça, como no Édipo Rei, de Sófocles. A mulher fenícia é então uma Esfinge e Portugal o rosto humano desse monstro, que se estende de Oriente a Ocidente contemplando fixamente o Ocidente/Oceano. O Ocidente, do latim occidens, entis, é o particípio presente do verbo occidere, o qual, se for intransitivo, significa morrer e, se for transitivo, significa matar. O Ocidente é assim o lugar onde se morre ou se é morto, como acontece com o sol que aparentemente aí declina e desaparece. Esse lugar é também o Oceano, o Okeanos que os gregos visionavam como o grande rio caótico e turbilhonante que corria circularmente em torno do mundo. Em qualquer dos casos, o Ocidente e o Oceano, para além da sua determinação geográfica, assinalam o aparente limite da terra firme do conhecimento e da vida, figurado na linha igualmente aparente do horizonte, cuja etimologia grega (orizón) designa “o que limita”. É isso o “futuro do passado” e é isso que a Europa-Esfinge, que “jaz […] / De Oriente a Ocidente”, amplamente “fita” com o rosto-Portugal.

Este confronto configura uma situação-limite, na qual uma das instâncias do confronto – Portugal, rosto-essência da Europa, e o Ocidente/Oceano, “futuro do passado” – não pode sobreviver. O rosto-Portugal fita, ou seja, foca unidireccionadamente, concentrando toda a energia do desejo numa visão intensa, isso que está diante de si, esse Ocidente/Oceano/Horizonte ignoto que é o “futuro” desse “passado”-Europa que Portugal ainda é, porém já na condição anfíbia de finistérrea ponta extrema, lançada para o alvo da alteridade absoluta, irredutível a qualquer identidade europeia, ocidental ou outra. Rosto humano da monstruosa Esfinge-Europa, que aqui pode figurar todo o próprio “passado” euroasiático da história do mundo, ou tudo o que ela mesma aspira a ultra-passar em si, Portugal figura o descentramento da história, da vida e da consciência europeia, e/ou da própria consciência, para o desenlace crucial do morrer ou matar que no Oceano/Ocidente se simboliza. Portugal incarna, no rosto/visão amplos descentrados para a alteridade infinita, a própria essência da Europa, ou seja, a sua sedução, rapto e arrebatamento jamais terminados e apaziguados, a própria condição da sua divina fecundação e criatividade.

Não esqueçamos que neste quadro da Europa que abre a Mensagem se destacam explícita e implicitamente os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais que Pessoa identifica nos quatro impérios “passados” e perecíveis cuja superação o Quinto Império simboliza: “E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou. // Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / para onde vai toda idade. / Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (“O Quinto Império”). No poema inaugural da Mensagem, a Grécia está representada pelos “olhos gregos”, Roma e a Cristandade pela Itália e a Europa por si mesma e pela Inglaterra, que personifica o quarto império noutros textos, em prosa, de Pessoa.

O mais fundo enigma reside, contudo, no facto de Portugal ser o “rosto”-“olhar esfíngico e fatal” com que a Europa fita o Ocidente. O que quer dizer que o enigma mortal não está propriamente diante, no Ocidente/Oceano, mas antes nesse que os fita. Portugal, como rosto-essência da Europa, é o próprio esfíngico enigma que, numa inesperada inversão da situação aparente, é suposto ser também contemplado pelo Ocidente/Oceano. Quem levará quem à morte? Paralisará e devorará Portugal, rosto-essência da Europa, o Ocidente/Oceano, caso este não decifre o enigma que transporta? Porá Portugal, rosto-essência da Europa, fim à vida, caso o Ocidente-Oceano o decifre? Morrerá o futuro e a alteridade às mãos do passado e do mesmo ou serão antes estes a perecer perante aqueles?

Toda a lógica e intencionalidade da Mensagem e do pensamento pessoano apontam para a segunda possibilidade. E tudo se esclarece se considerarmos que em Portugal se figura a impossível coexistência das duas figuras e a encruzilhada crucial na qual uma tem de ser sacrificada. Talvez seja precisamente esse o enigma. Tudo depende do que vai predominar em Portugal - que Pessoa vê como a quinta-essência do complexo de possibilidades que é a própria Europa - e, a um nível mais fundo, na possibilidade universal do homem e da consciência que Portugal aqui figura (como Israel, a Cristandade ou o Islão nas respectivas culturas): ou a asfixia e deglutição da adveniente alteridade pela monstruosa mesmidade passada ou o autocolapso desta no desentranhamento e desvendamento do secreto fito a que no mais íntimo aspira - morrer e devir, autotranscender-se trespassando a linha do horizonte e revelando a sua mera aparência, converter e revelar o limite como limiar. Ou o quarto ou o Quinto Império, como consumação do íntimo fito da consciência europeia e da própria consciência, tanto mais comprovado quanto mais aparente e visceralmente o rejeita: ser, agora e sempre, divinamente seduzida, raptada, arrebatada e enfim fecundada.

Labirinto que é, talvez só nesse rapto, só nesse abandono e entrega à alteridade absoluta, possa encontrar o fio de Ariana que a resgate de morrer devorada pelo Minotauro, ou seja, autodevorada pelo próprio medo e desejo de segurança agressivos que este, tal como a Esfinge, personificam.

(texto em elaboração)