Um espaço para reinventar Portugal como nação de todo o Mundo, que estabeleça pontes, mediações e diálogos entre todos os povos, culturas e civilizações e promova os valores mais universalistas, conforme o símbolo da Esfera Armilar. Há que visar o melhor possível para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, orientada não só para o bem da espécie humana, mas também para a preservação da natureza e o bem-estar de todas as formas de vida sencientes.

"Nós, Portugal, o poder ser"

- Fernando Pessoa, Mensagem.

A praia ( a abeirar-nos de Agostinho da Silva).



Todos os caminhos levam à praia - um novo início para a Metafísica


“Doravante sabemos: todos os caminhos não levam mais a Roma, a Jerusalém ou à Meca... todos os lugares sagrados do Oriente e do Ocidente, todas as santas montanhas foram analisadas, exploradas, devastadas; só restam velhos e piedosos mercadores, múmias, grandes pessoas trajando roupas fora de moda; símbolos das nossas vidas anteriores ou mortas. Aí ainda são celebrados cultos sem êxtase, na presença de deuses todo-poderosos e muito propriamente empalhados, arquivos de civilização e de fés preciosas e em vias de desaparecimento.

Doravante sabemos: hoje em dia, todos os caminhos levam à praia... e isso não é “alguma coisa além do nada”, é “nada, além de alguma coisa”.

Tanto vale dizer que logo seremos todos metafísicos, nus, mas ao sol, nus, mas coroados pelas espumas... Se meditarmos os cantos pagãos de Fernando Pessoa pelas ruas de Lisboa, eles continuarão sendo ilisíveis, mas eles se tornarão óbvios se os murmurarmos nas praias de Ipanema.

O Rio de Janeiro é certamente o melhor lugar do mundo para compreendermos “Todo o Pessoa” – num único dia lá podemos encontrar cada um dos seus heterónimos. Ao dizer isso, não quero a todo preço anexar o Brasil à cultura portuguesa por ainda mais algum tempo (esses liames, cada vez mais finos, acabarão desaparecendo em breve), mas para não nos privarmos do primeiro metafísico, chantre do disparate, da profundeza e da vacuidade, daquilo que devemos chamar as “coisas”: tudo aquilo que merece ser tragado antes do final do século pelas grandes águas. É assim que os mais corajosos e os mais inconscientes dentre os homens se mantêm preparados e bronzeados na praia, essa orla do infinito que nenhuma redundância carnuda ou bandeirola publicitária poderia ocultar.

Doravante, o futuro de um país será medido através da extensão das suas costas. Inútil dizer que, nesse campo, o Brasil está bem servido. Não resta dúvida de que esse país seja um modelo para o futuro do mundo, pois aqui há lugar, há praia, para todos.
O melhor e o pior, o mais pobre e o mais rico pararão de guerrear-se para juntos mergulharem nas mesmas águas – essas águas que arrebatam a história e as suas diferenças, banhando-nos no único culto que existe: o culto do instante.
De agora em diante, só existe salvação na onda que passa, a onda que afoga e o grande sol que precisa nossos limites e depois nos apaga...

Não é um vão jogo de palavras ou de ortografia dizer que, na praia, estamos à “beira-mãe”... os líquidos amnióticos que lá nos envolvem operam a perfeita regressão de um povo à sua matriz. Os caminhos que levam à praia são os caminhos do retorno. O contrário do caminho dos heróis que se aventuram em terras secas ou em terras altas para chegar a um tamanho adulto... o caminho que leva à praia é o caminho das crianças ou dos adultos arrependidos que compreenderam que, construir uma cidade ou um “mundo melhor”, é tão vão quanto construir um castelo de areia.
Na história da filosofia, podemos distinguir dois tipos de filósofo: aqueles que vão à praia e aqueles que não vão à praia. Seria possível imaginar Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, Sartre e outros de fato de banho, no meio da multidão enlouquecida de cariocas, das virgens voluptuosas que nada têm a esconder sob a sua pele, nenhum “baixo mundo”, o seu vazio é tão óbvio do lado de dentro quanto do lado de fora (o vazio que está no interior de um cântaro é o vazio que preenche todo o universo)?
Compreendemos, então, que esses filósofos tenham falado do “fim da metafísica”, a sua “filosofia das luzes” era a filosofia das lâmpadas a óleo ou das fadas eléctricas e não a filosofia do grandioso sol, a que frequentava Heraclito em Éfeso ou os antigos gregos que passavam o seu tempo a passeio; passeios que sempre terminavam na praia ou na contemplação dos belos corpos que despertavam o desejo (eros) por uma beleza sem limites (cf. Sócrates, Platão e Cia.), mas era o privilégio dos maiores não se deixar abarrotar por aquilo que abarrota as praias, ver o vazio, a infinita pureza do espaço que se diverte com as núpcias incertas da água e da terra, de onde nasceu a grande “lama” humana (adamah).

Na sua volta aos gregos como origem da filosofia ocidental, Heidegger esqueceu-se do essencial: voltar à praia primeira, ali onde emerge a terra natal... assim os seus caminhos não conduzem a “lugar nenhum”. É preciso ir mais longe, até a beira das águas...
Para os futuros filósofos, sem dúvida será útil fazer uma peregrinação ao Rio, deixar-se conduzir pela divina Sofia, não mais às margens do Reno, que continua sendo alguma coisa, mas às margens do Nada, ali onde a questão “o que é o Ser?” ou “o que é uma coisa?” deixam de ser colocadas, pois o ser, suave e lucidamente dissolve-se, deitando-se numa imobilidade que não é a imobilidade da morte, mas a da Vida que se experimenta a si mesma no momento de adormecer, numa consciência mais profunda... Essa grande noite no coração do dia cujo segredo e poderoso enigma é guardado pelos povos ensolarados.

Todos os caminhos levam à praia mas, mesmo estando no Rio, podemos deter-nos no meio do caminho; um evangelista pode interromper a vossa queda necessária, vós o reconhecereis pelo seu “ar salvo”, ou seja, o seu colarinho quase branco e a sua gravata “um pouco amassada”, pois “a grande perfeição conheceu um defeito”, como diria Lao Tsé. Ele vos dirá para lá não ir, pois há peixes podres na baía e uma incrível variedade de demónios... ele terá certamente razão, mas aquilo que buscamos hoje em dia não é nem uma razão, nem uma fé para viver. Tudo isso é encantador, mas, oh, como é perecível!

Procuramos apenas um “lugar tranquilo”... uma praia deserta, sem dúvida, que não encontraremos nem no Rio, nem em lugar algum se ela já não estiver, primeiro, no nosso coração e na nossa cabeça antes de se comunicar a todos os nossos membros... uma praia de silêncio...

Todas as filosofias, todas as ciências, todas as religiões, deveriam levar-nos a essa praia... nós paramos no meio do caminho, o espírito sério privou-nos do nosso Santo Espírito... essa leve brisa ou esse vento da tempestade que ergue as nossas ondas e faz dançar as nossas poeiras, ali, tão próximo nas profundezas da pele...” (Texto adaptado)

Jean-Yves Leloup

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A praia ( a abeirar-nos de Agostinho da Silva).



Todos os caminhos levam à praia - um novo início para a Metafísica


“Doravante sabemos: todos os caminhos não levam mais a Roma, a Jerusalém ou à Meca... todos os lugares sagrados do Oriente e do Ocidente, todas as santas montanhas foram analisadas, exploradas, devastadas; só restam velhos e piedosos mercadores, múmias, grandes pessoas trajando roupas fora de moda; símbolos das nossas vidas anteriores ou mortas. Aí ainda são celebrados cultos sem êxtase, na presença de deuses todo-poderosos e muito propriamente empalhados, arquivos de civilização e de fés preciosas e em vias de desaparecimento.

Doravante sabemos: hoje em dia, todos os caminhos levam à praia... e isso não é “alguma coisa além do nada”, é “nada, além de alguma coisa”.

Tanto vale dizer que logo seremos todos metafísicos, nus, mas ao sol, nus, mas coroados pelas espumas... Se meditarmos os cantos pagãos de Fernando Pessoa pelas ruas de Lisboa, eles continuarão sendo ilisíveis, mas eles se tornarão óbvios se os murmurarmos nas praias de Ipanema.

O Rio de Janeiro é certamente o melhor lugar do mundo para compreendermos “Todo o Pessoa” – num único dia lá podemos encontrar cada um dos seus heterónimos. Ao dizer isso, não quero a todo preço anexar o Brasil à cultura portuguesa por ainda mais algum tempo (esses liames, cada vez mais finos, acabarão desaparecendo em breve), mas para não nos privarmos do primeiro metafísico, chantre do disparate, da profundeza e da vacuidade, daquilo que devemos chamar as “coisas”: tudo aquilo que merece ser tragado antes do final do século pelas grandes águas. É assim que os mais corajosos e os mais inconscientes dentre os homens se mantêm preparados e bronzeados na praia, essa orla do infinito que nenhuma redundância carnuda ou bandeirola publicitária poderia ocultar.

Doravante, o futuro de um país será medido através da extensão das suas costas. Inútil dizer que, nesse campo, o Brasil está bem servido. Não resta dúvida de que esse país seja um modelo para o futuro do mundo, pois aqui há lugar, há praia, para todos.
O melhor e o pior, o mais pobre e o mais rico pararão de guerrear-se para juntos mergulharem nas mesmas águas – essas águas que arrebatam a história e as suas diferenças, banhando-nos no único culto que existe: o culto do instante.
De agora em diante, só existe salvação na onda que passa, a onda que afoga e o grande sol que precisa nossos limites e depois nos apaga...

Não é um vão jogo de palavras ou de ortografia dizer que, na praia, estamos à “beira-mãe”... os líquidos amnióticos que lá nos envolvem operam a perfeita regressão de um povo à sua matriz. Os caminhos que levam à praia são os caminhos do retorno. O contrário do caminho dos heróis que se aventuram em terras secas ou em terras altas para chegar a um tamanho adulto... o caminho que leva à praia é o caminho das crianças ou dos adultos arrependidos que compreenderam que, construir uma cidade ou um “mundo melhor”, é tão vão quanto construir um castelo de areia.
Na história da filosofia, podemos distinguir dois tipos de filósofo: aqueles que vão à praia e aqueles que não vão à praia. Seria possível imaginar Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, Sartre e outros de fato de banho, no meio da multidão enlouquecida de cariocas, das virgens voluptuosas que nada têm a esconder sob a sua pele, nenhum “baixo mundo”, o seu vazio é tão óbvio do lado de dentro quanto do lado de fora (o vazio que está no interior de um cântaro é o vazio que preenche todo o universo)?
Compreendemos, então, que esses filósofos tenham falado do “fim da metafísica”, a sua “filosofia das luzes” era a filosofia das lâmpadas a óleo ou das fadas eléctricas e não a filosofia do grandioso sol, a que frequentava Heraclito em Éfeso ou os antigos gregos que passavam o seu tempo a passeio; passeios que sempre terminavam na praia ou na contemplação dos belos corpos que despertavam o desejo (eros) por uma beleza sem limites (cf. Sócrates, Platão e Cia.), mas era o privilégio dos maiores não se deixar abarrotar por aquilo que abarrota as praias, ver o vazio, a infinita pureza do espaço que se diverte com as núpcias incertas da água e da terra, de onde nasceu a grande “lama” humana (adamah).

Na sua volta aos gregos como origem da filosofia ocidental, Heidegger esqueceu-se do essencial: voltar à praia primeira, ali onde emerge a terra natal... assim os seus caminhos não conduzem a “lugar nenhum”. É preciso ir mais longe, até a beira das águas...
Para os futuros filósofos, sem dúvida será útil fazer uma peregrinação ao Rio, deixar-se conduzir pela divina Sofia, não mais às margens do Reno, que continua sendo alguma coisa, mas às margens do Nada, ali onde a questão “o que é o Ser?” ou “o que é uma coisa?” deixam de ser colocadas, pois o ser, suave e lucidamente dissolve-se, deitando-se numa imobilidade que não é a imobilidade da morte, mas a da Vida que se experimenta a si mesma no momento de adormecer, numa consciência mais profunda... Essa grande noite no coração do dia cujo segredo e poderoso enigma é guardado pelos povos ensolarados.

Todos os caminhos levam à praia mas, mesmo estando no Rio, podemos deter-nos no meio do caminho; um evangelista pode interromper a vossa queda necessária, vós o reconhecereis pelo seu “ar salvo”, ou seja, o seu colarinho quase branco e a sua gravata “um pouco amassada”, pois “a grande perfeição conheceu um defeito”, como diria Lao Tsé. Ele vos dirá para lá não ir, pois há peixes podres na baía e uma incrível variedade de demónios... ele terá certamente razão, mas aquilo que buscamos hoje em dia não é nem uma razão, nem uma fé para viver. Tudo isso é encantador, mas, oh, como é perecível!

Procuramos apenas um “lugar tranquilo”... uma praia deserta, sem dúvida, que não encontraremos nem no Rio, nem em lugar algum se ela já não estiver, primeiro, no nosso coração e na nossa cabeça antes de se comunicar a todos os nossos membros... uma praia de silêncio...

Todas as filosofias, todas as ciências, todas as religiões, deveriam levar-nos a essa praia... nós paramos no meio do caminho, o espírito sério privou-nos do nosso Santo Espírito... essa leve brisa ou esse vento da tempestade que ergue as nossas ondas e faz dançar as nossas poeiras, ali, tão próximo nas profundezas da pele...” (Texto adaptado)

Jean-Yves Leloup

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