Um espaço para reinventar Portugal como nação de todo o Mundo, que estabeleça pontes, mediações e diálogos entre todos os povos, culturas e civilizações e promova os valores mais universalistas, conforme o símbolo da Esfera Armilar. Há que visar o melhor possível para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, orientada não só para o bem da espécie humana, mas também para a preservação da natureza e o bem-estar de todas as formas de vida sencientes.

"Nós, Portugal, o poder ser"

- Fernando Pessoa, Mensagem.

A geração perdida ou o parque jurássico da política


A geração que está agora com 16-25 anos estará perdida?

Com a recessão, por ser tão difícil encontrar emprego e segurá-lo, uma geração inteira está desesperançada. Se o país não responder, toda ela se perderá, avisam os autores desse estudo encomendado pela organização não governamental Prince"s Trust. Em Portugal, não há qualquer estudo equivalente a este financiado pelo príncipe Carlos - que auscultou 2088 britânicos. Mas há indicadores. A Eurostat acaba de actualizar o fulcral: em Novembro, o desemprego nos jovens até aos 25 anos estava nos 18,8 por cento, abaixo da média da União Europeia (21,4 por cento). Nos extremos, a Holanda (7,5) e a Espanha (43,8).
O fenómeno é bem conhecido, julga Virgínia Ferreira, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (UC): "Ao lado, em Espanha, chamam-lhes os mileuristas. Aqui, ficamos pela metade, pelos 500 euros." Falar em geração perdida, contudo, parece-lhe um exagero: "Isso é um rótulo, uma máxima usada para simplificar uma ideia complexa".
Há cada vez menos jovens. Em 1999, segundo o Instituto Nacional de Estatística, eram 3,1 milhões - 48 por cento tinham entre 15 e 24 anos (1,5 milhões). Em 2008, eram menos 327 mil. E o grosso da contracção (295 mil) verificou-se naquela faixa etária. É a geração mais escolarizada de sempre. No ano lectivo 2007-2008, estavam inscritos no ensino superior 377 mil alunos - mais 20 por cento do que em 1995-1996. No final, as universidades mandaram para o mercado mais de 83 mil diplomados - mais 16 por cento do que no ano anterior. Apesar disto, "as gerações anteriores entraram mais facilmente no mercado de trabalho", avalia Carlos Gonçalves, que tem estudado a empregabilidade dos universitários. Agora demora mais. E quem fura, amiúde, fá-lo através de contratos a termo certo ou de recibos verdes. O exemplo típico é o do licenciado no call center.

Havia, aponta Elísio Estanque, da Faculdade de Economia da UC, "uma empregabilidade relacionada com a aprendizagem". Os alunos tentavam se-guir o gosto, a vocação. O ensino "democratizou-se, mercantilizou-se". A garantia esfumou-se. A crise agudizou o fosso. Agora, "a grande preocupação é se o curso tem ou não saída. Per-versamente, têm mais dificuldades em obter melhores resultados".

A difícil transição

Nem só os universitários vivem a calamidade. Os menos qualificados também - todos os dias, empresas a falir, fábricas a fechar portas. A transição do mundo juvenil para o mundo adulto alterou-se. Os jovens deixam-se estar em casa dos pais. Adiam compromissos - como comprar casa ou constituir família, precisa Virgínia Ferreira. Por toda a parte se vê desejar um trabalho precário. Não aquele em vez de outro: aquele porque não há outro. "À minha volta está tudo deprimido por não ter expectativas e por ter de conviver com um emprego insatisfatório", desabafa Sara Gamito, do movimento Precários Inflexíveis. "Ficam com os pés e as mãos atados e vão perdendo o alento."

"Apesar de não nos definirmos só pelo que fazemos, o trabalho desempenha um papel fundamental na construção do eu", explica Sofia Marques da Silva, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. "E o salário é um elemento essencial para aceder a bens e organizar a transição. Sem salário, há um recuo ligado até à dignidade."
Recusa o epíteto "perdida", mas está convencida de que "esta geração tem muita dificuldade em ter uma cultura de projecto - em imaginar o que vai fazer num tempo que ainda não existe". Fixa no presente o sentido dos dias e isso parece-lhe "perigoso": "Alguém que não imagina etapas na sua vida, às vezes, só quer usufruir rapidamente momentos, sensações". Não fala em revolta, como se viu noutros países europeus. Fala de ingresso na criminalidade, por exemplo. Elísio Estanque observa alheamento e inquieta-se com a saúde da democracia. Não só por o sistema não funcionar sem uma base de participação eleitoral. Também por ser importante haver associações para o olear. E existir "pouca disponibilidade dos jovens para participar: condiciona-os o medo".

Não se pode homogeneizar. Há focos de protesto, inclusive através de blogues e movimentos, como lembra Cristina Andrade, da Fartos d"Estes Recibos Verdes. Mas impera "uma docilidade que é assustadora", torna Sofia Marques da Silva. "As empresas olham para estes jovens como dóceis. Aceitam tudo." Ao fazer uma etnografia numa casa de juventude de Matosinhos, ouviu um dizer: "Comem a carne e deixam-nos os ossos". O rapaz que pronunciou aquela frase não aceitava tudo. Tinha 20 anos e já fora cortador de carne, já fora estivador no Porto de Leixões e não aceitou um trabalho na construção - era mal pago, era nocturno e em tempo de chuva.

Há estratégias de valorização - de sobrevivência mental. Às vezes, basta-lhes uma centelha. Sofia Marques da Silva viu aquele rapaz explicar, por exemplo, como carregar contentores é exigente em termos físicos. Ou uma rapariga que trabalhava numa fábrica gabar-se de saber fazer de tudo: cortar, coser, limpar.

Factos e números sobre o problema maior de uma geração

- Entre 1999 e 2009 foram criados 273,3 mil postos de trabalho. Mas destruíram-se 221 mil empregos ocupados por jovens.

- Na mesma década, foram criados 117 mil postos de trabalho com contratos permanentes. Mas destruíram-se 175 mil empregos com contratos sem termo ocupados pelos jovens e 77 mil ocupados por empregados com idades entre os 25 e os 34 anos.

- De 1999 a 2009, foram criados 205 mil postos de trabalho com contratos a prazo. Mas destruíram-se nove mil postos de trabalho a prazo ocupados por jovens. Mais de metade dos postos de trabalho criados com contratos a prazo foram ocupados por pessoas com idades entre os 25 e os 34 anos.

- Nesses dez anos, destruíram-se 48 mil empregos com outro tipo de contratos (incluindo recibos verdes). Três em quatro desses postos de trabalho eram ocupados por jovens.

- Em 1999, cerca de 60 por cento dos jovens tinham um contrato permanente. Dez anos depois, esse grupo desceu para 46 por cento do total.

- Em 1999, cerca de 30 por cento dos jovens tinham um contrato a prazo. Dez anos depois, o seu número representava já 47 por cento do total.

- Em 1999, um em cada quatro desempregados era jovem. Em 2009, passou a ser um em cada seis.

- Em 1999, três em cada quatro desempregados jovens tinham o ensino básico. Dez anos depois, o seu número baixou para dois em cada quatro.

- Em 1999, os jovens desempregados licenciados representavam cinco por cento do desemprego juvenil. Dez anos depois, o seu peso era já de 12 por cento.

- Em 1999, havia nove mil jovens licenciados inactivos (não eram empregados nem desempregados). Dez anos depois, passaram a ser 26 mil. Nesse período, subiu também o número de jovens inactivos com o ensino secundário (de 212 mil para 228 mil).

|Ana Cristina Pereira, com Romana Borja-Santos, Jornal Público.

___

A situação descrita neste artigo só muito indirectamente tem que ver com a actual crise económica global – que é uma crise de crescimento do sistema capitalista planetário, ligada a um conjunto de mutações estruturais nascidas duma mudança ao nível da polaridade dos mercados a nível mundial: neste momento a China já é mais do que uma potência regional e o desmascarar do sistema financeiro assente na especulação desenraizada, sem um sentido para além do lucro imediato e sem fundamentos ‘reais’, mostra-nos que o futuro imediato está nas mãos do investimento com motivações geoestratégicas e geopolíticas, o que corresponde a uma mudança de paradigma cujo impacto já se está a fazer sentir nas zonas mais deprimidas do globo. Esse investimento depende duma intencionalidade oriunda de fora da esfera do económico e que parece estar a conseguir impor-se aos ‘mercados’, de acordo com linhas estratégicas que pertencem a uma arte da guerra por meios de dominação não letais, embora existam muitos danos colaterais que levam à morte de um número esmagador de seres humanos, privados de meios de subsistência.

Se as sociedades do hemisfério norte continuarem a pensar que a economia está fora do horizonte da soberania democrática, dar-se-á uma implosão das democracias participativas, ou o seu esvaziamento ontológico e antropológico. Há uma linha de pensamento no pensamento ocidental que liga a democracia ao liberalismo económico, no pressuposto de que o ‘mercado’ é o principal esteio da democracia. Isto leva a que a liberdade cívica seja pensada de acordo com a lei da oferta e da procura, como se não pudesse existir uma vontade colectiva capaz de mobilizar os cidadãos no sentido de, individual e colectivamente, ultrapassarem o determinismo económico e, até, de o usarem em função de interesses ligados à criação duma sociedade mais fraterna e, por essa via, mais democrática.

A sociedade é a principal construção cultural da humanidade. Há aqui uma circularidade inultrapassável: a cultura é o resultado da acção social, mas também é um instrumento de reestruturação social. O imaginário social, profundamente estudado por Castoriadis, para só citar este autor, é uma força poderosa de configuração da sociabilidade. As sociedades em cada momento da sua vida acabam por ser aquilo que querem, embora nunca cheguem a ser aquilo que efectivamente podem construir, nem a quererem aquilo que efectivamente podem realizar de positivo. Isto porque há um conjunto de dispositivos de dissuasão que, activamente, impedem a prossecução de metas muito ambiciosas no que se refere ao incremento da justiça social.

E penso que este é o principal problema do nosso tempo. Há demasiados tabus, principalmente ao nível da intervenção política na economia, que acabam por funcionar como formas inclementes de condicionamento social. Primeiro os cidadãos vêem o seu espaço de intervenção política reduzido a uma série de intervenções pontuais, de carácter eleitoral, de acordo com uma lógica de participação assente na representatividade. O problema é que os ‘representantes’ funcionam dentro dum enquadramento institucional que é cada vez mais condicionado por esses tabus, por esses imperativos inquestionáveis que acabam por transformar a sociedade num sistema fechado anómico: já não estamos perante o jogo entre-expressivo da dialéctica nomos/physis, constitutivo do imaginário social grego e ocidental, mas sob o domínio dum regime ontológico assente na dominação sem ‘Dominador’ – acabam por ser os dominados que se auto-impõem uma heteronomia incapaz de se pensar como inautenticidade, porque é vivida de acordo com um regime de consciência incapaz de pensar, imaginar, alternativas emancipadoras.

Daí a docilidade dos jovens apanhados na trama duma sociabilidade de sujeição e de capitulação. É inquietante ver que neste momento toda uma geração se acha incapaz de futuro e sem que isso mereça qualquer intervenção de fundo dos responsáveis políticos. A este título a mensagem de Ano Novo do Presidente da República não pode ser menos sintomática: cuidado com a economia, ou seja, sejam aves implumes de aviário bem comportadas. Enquanto se considerar a ‘despesa’ como algo a combater a todo o custo, sem olhar às consequências do não investimento social (refiro-me do investimento da sociedade em si própria e não à caridadezinha de Estado), e sem chamar a atenção para o que realmente importa, não haverá ‘República’, mas uma ditadura sem ‘Ditador’.

Se o imaginário social dos séculos XIX e XX foi muito marcado pela Esperança, hoje parece que vivemos para lá do desespero ou da possibilidade de o assumir como sintoma duma necessidade de mudança.

E isto entra em contradição com o investimento, ao nível económico e do imaginário social, que é feito na educação. E se olharmos mais de perto, podemos ver que esse investimento, cada vez mais imperativo, não obedece a uma lógica de emancipação dos sujeitos para a criação de futuro, mas a uma tendência cada vez mais irresistível para uma conformação das novas gerações às exigências do ‘mercado’ e das suas cada vez mais restritas ofertas de reconhecimento social, ou seja, a precariedade no emprego e o desemprego estrutural, cada vez mais presente na nossa realidade social.

A situação actual desta geração que cresce fora da cidadania deve merecer uma mobilização política no sentido de restaurar a democracia. Se há um grupo crescente de pessoas que está a ser expulso da cidade, empurrado para uma marginalidade social acabrunhante, torna-se necessário que se tomem medidas, nascidas duma verdadeira tomada de consciência da necessidade de se tomar a sociedade como o principal foco do investimento colectivo.

E aqui não podemos deixar de pensar o papel do Estado e a necessidade de colocar o investimento público ao serviço democracia. E isso não se faz com TGVs e com a megalomania dos guardiões da ‘animal farm’ social.

E não se pense que a ‘docilidade’, a passividade, dos indivíduos apanhados na teia do determinismo social não pode, no fundo, esconder um barril de pólvora. O problema é que o conceito de Revolução foi progressivamente desmantelado ao ponto de hoje não poder servir de centro motivador do imaginário social. Embora o imaginário social mediatizado viva ainda na sombra do Maio de 68. Em 1994, Vicente Jorge Silva, director do Público, denunciou estrondosamente a inadequação sócio-política daquilo a que ele chamou a ‘geração rasca’. E o imaginema colou: hoje já não há ‘geração rasca’, ou geração ‘à rasca’, fala-se em geração ‘perdida’. E aqui ‘perdida’ não significará ‘desorientada’, mas reduzida a nada em termos sociais, obliterada, condenada. E, por mais estranho que pareça, o gesto totalitário dum director de jornal auto-erigido em educador do povo, ‘iluminado’ e nostálgico da revolução como deve ser, do Maio de 98, acabou por ser uma das causas da actual situação sócio-cultural, embora uma causa não estrutural.

Mas talvez estejamos longe de ver Roma a arder. Até a pólvora pode ser desperdiçada, como tudo o que a sociedade pode alcançar e não chega sequer a tornar-se consciente ao nível das possibilidades.

(continua)

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Excelente artigo, muito completo. Deve ser também discutido, como é óbvio, no grupo de politica.

Viviane Forrester – em "O horror económico" já mostrava como as condições económicas levariam, em pouco tempo, da precariedade de vida ao próprio desaparecimento da classe trabalhadora.

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A geração perdida ou o parque jurássico da política


A geração que está agora com 16-25 anos estará perdida?

Com a recessão, por ser tão difícil encontrar emprego e segurá-lo, uma geração inteira está desesperançada. Se o país não responder, toda ela se perderá, avisam os autores desse estudo encomendado pela organização não governamental Prince"s Trust. Em Portugal, não há qualquer estudo equivalente a este financiado pelo príncipe Carlos - que auscultou 2088 britânicos. Mas há indicadores. A Eurostat acaba de actualizar o fulcral: em Novembro, o desemprego nos jovens até aos 25 anos estava nos 18,8 por cento, abaixo da média da União Europeia (21,4 por cento). Nos extremos, a Holanda (7,5) e a Espanha (43,8).
O fenómeno é bem conhecido, julga Virgínia Ferreira, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (UC): "Ao lado, em Espanha, chamam-lhes os mileuristas. Aqui, ficamos pela metade, pelos 500 euros." Falar em geração perdida, contudo, parece-lhe um exagero: "Isso é um rótulo, uma máxima usada para simplificar uma ideia complexa".
Há cada vez menos jovens. Em 1999, segundo o Instituto Nacional de Estatística, eram 3,1 milhões - 48 por cento tinham entre 15 e 24 anos (1,5 milhões). Em 2008, eram menos 327 mil. E o grosso da contracção (295 mil) verificou-se naquela faixa etária. É a geração mais escolarizada de sempre. No ano lectivo 2007-2008, estavam inscritos no ensino superior 377 mil alunos - mais 20 por cento do que em 1995-1996. No final, as universidades mandaram para o mercado mais de 83 mil diplomados - mais 16 por cento do que no ano anterior. Apesar disto, "as gerações anteriores entraram mais facilmente no mercado de trabalho", avalia Carlos Gonçalves, que tem estudado a empregabilidade dos universitários. Agora demora mais. E quem fura, amiúde, fá-lo através de contratos a termo certo ou de recibos verdes. O exemplo típico é o do licenciado no call center.

Havia, aponta Elísio Estanque, da Faculdade de Economia da UC, "uma empregabilidade relacionada com a aprendizagem". Os alunos tentavam se-guir o gosto, a vocação. O ensino "democratizou-se, mercantilizou-se". A garantia esfumou-se. A crise agudizou o fosso. Agora, "a grande preocupação é se o curso tem ou não saída. Per-versamente, têm mais dificuldades em obter melhores resultados".

A difícil transição

Nem só os universitários vivem a calamidade. Os menos qualificados também - todos os dias, empresas a falir, fábricas a fechar portas. A transição do mundo juvenil para o mundo adulto alterou-se. Os jovens deixam-se estar em casa dos pais. Adiam compromissos - como comprar casa ou constituir família, precisa Virgínia Ferreira. Por toda a parte se vê desejar um trabalho precário. Não aquele em vez de outro: aquele porque não há outro. "À minha volta está tudo deprimido por não ter expectativas e por ter de conviver com um emprego insatisfatório", desabafa Sara Gamito, do movimento Precários Inflexíveis. "Ficam com os pés e as mãos atados e vão perdendo o alento."

"Apesar de não nos definirmos só pelo que fazemos, o trabalho desempenha um papel fundamental na construção do eu", explica Sofia Marques da Silva, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. "E o salário é um elemento essencial para aceder a bens e organizar a transição. Sem salário, há um recuo ligado até à dignidade."
Recusa o epíteto "perdida", mas está convencida de que "esta geração tem muita dificuldade em ter uma cultura de projecto - em imaginar o que vai fazer num tempo que ainda não existe". Fixa no presente o sentido dos dias e isso parece-lhe "perigoso": "Alguém que não imagina etapas na sua vida, às vezes, só quer usufruir rapidamente momentos, sensações". Não fala em revolta, como se viu noutros países europeus. Fala de ingresso na criminalidade, por exemplo. Elísio Estanque observa alheamento e inquieta-se com a saúde da democracia. Não só por o sistema não funcionar sem uma base de participação eleitoral. Também por ser importante haver associações para o olear. E existir "pouca disponibilidade dos jovens para participar: condiciona-os o medo".

Não se pode homogeneizar. Há focos de protesto, inclusive através de blogues e movimentos, como lembra Cristina Andrade, da Fartos d"Estes Recibos Verdes. Mas impera "uma docilidade que é assustadora", torna Sofia Marques da Silva. "As empresas olham para estes jovens como dóceis. Aceitam tudo." Ao fazer uma etnografia numa casa de juventude de Matosinhos, ouviu um dizer: "Comem a carne e deixam-nos os ossos". O rapaz que pronunciou aquela frase não aceitava tudo. Tinha 20 anos e já fora cortador de carne, já fora estivador no Porto de Leixões e não aceitou um trabalho na construção - era mal pago, era nocturno e em tempo de chuva.

Há estratégias de valorização - de sobrevivência mental. Às vezes, basta-lhes uma centelha. Sofia Marques da Silva viu aquele rapaz explicar, por exemplo, como carregar contentores é exigente em termos físicos. Ou uma rapariga que trabalhava numa fábrica gabar-se de saber fazer de tudo: cortar, coser, limpar.

Factos e números sobre o problema maior de uma geração

- Entre 1999 e 2009 foram criados 273,3 mil postos de trabalho. Mas destruíram-se 221 mil empregos ocupados por jovens.

- Na mesma década, foram criados 117 mil postos de trabalho com contratos permanentes. Mas destruíram-se 175 mil empregos com contratos sem termo ocupados pelos jovens e 77 mil ocupados por empregados com idades entre os 25 e os 34 anos.

- De 1999 a 2009, foram criados 205 mil postos de trabalho com contratos a prazo. Mas destruíram-se nove mil postos de trabalho a prazo ocupados por jovens. Mais de metade dos postos de trabalho criados com contratos a prazo foram ocupados por pessoas com idades entre os 25 e os 34 anos.

- Nesses dez anos, destruíram-se 48 mil empregos com outro tipo de contratos (incluindo recibos verdes). Três em quatro desses postos de trabalho eram ocupados por jovens.

- Em 1999, cerca de 60 por cento dos jovens tinham um contrato permanente. Dez anos depois, esse grupo desceu para 46 por cento do total.

- Em 1999, cerca de 30 por cento dos jovens tinham um contrato a prazo. Dez anos depois, o seu número representava já 47 por cento do total.

- Em 1999, um em cada quatro desempregados era jovem. Em 2009, passou a ser um em cada seis.

- Em 1999, três em cada quatro desempregados jovens tinham o ensino básico. Dez anos depois, o seu número baixou para dois em cada quatro.

- Em 1999, os jovens desempregados licenciados representavam cinco por cento do desemprego juvenil. Dez anos depois, o seu peso era já de 12 por cento.

- Em 1999, havia nove mil jovens licenciados inactivos (não eram empregados nem desempregados). Dez anos depois, passaram a ser 26 mil. Nesse período, subiu também o número de jovens inactivos com o ensino secundário (de 212 mil para 228 mil).

|Ana Cristina Pereira, com Romana Borja-Santos, Jornal Público.

___

A situação descrita neste artigo só muito indirectamente tem que ver com a actual crise económica global – que é uma crise de crescimento do sistema capitalista planetário, ligada a um conjunto de mutações estruturais nascidas duma mudança ao nível da polaridade dos mercados a nível mundial: neste momento a China já é mais do que uma potência regional e o desmascarar do sistema financeiro assente na especulação desenraizada, sem um sentido para além do lucro imediato e sem fundamentos ‘reais’, mostra-nos que o futuro imediato está nas mãos do investimento com motivações geoestratégicas e geopolíticas, o que corresponde a uma mudança de paradigma cujo impacto já se está a fazer sentir nas zonas mais deprimidas do globo. Esse investimento depende duma intencionalidade oriunda de fora da esfera do económico e que parece estar a conseguir impor-se aos ‘mercados’, de acordo com linhas estratégicas que pertencem a uma arte da guerra por meios de dominação não letais, embora existam muitos danos colaterais que levam à morte de um número esmagador de seres humanos, privados de meios de subsistência.

Se as sociedades do hemisfério norte continuarem a pensar que a economia está fora do horizonte da soberania democrática, dar-se-á uma implosão das democracias participativas, ou o seu esvaziamento ontológico e antropológico. Há uma linha de pensamento no pensamento ocidental que liga a democracia ao liberalismo económico, no pressuposto de que o ‘mercado’ é o principal esteio da democracia. Isto leva a que a liberdade cívica seja pensada de acordo com a lei da oferta e da procura, como se não pudesse existir uma vontade colectiva capaz de mobilizar os cidadãos no sentido de, individual e colectivamente, ultrapassarem o determinismo económico e, até, de o usarem em função de interesses ligados à criação duma sociedade mais fraterna e, por essa via, mais democrática.

A sociedade é a principal construção cultural da humanidade. Há aqui uma circularidade inultrapassável: a cultura é o resultado da acção social, mas também é um instrumento de reestruturação social. O imaginário social, profundamente estudado por Castoriadis, para só citar este autor, é uma força poderosa de configuração da sociabilidade. As sociedades em cada momento da sua vida acabam por ser aquilo que querem, embora nunca cheguem a ser aquilo que efectivamente podem construir, nem a quererem aquilo que efectivamente podem realizar de positivo. Isto porque há um conjunto de dispositivos de dissuasão que, activamente, impedem a prossecução de metas muito ambiciosas no que se refere ao incremento da justiça social.

E penso que este é o principal problema do nosso tempo. Há demasiados tabus, principalmente ao nível da intervenção política na economia, que acabam por funcionar como formas inclementes de condicionamento social. Primeiro os cidadãos vêem o seu espaço de intervenção política reduzido a uma série de intervenções pontuais, de carácter eleitoral, de acordo com uma lógica de participação assente na representatividade. O problema é que os ‘representantes’ funcionam dentro dum enquadramento institucional que é cada vez mais condicionado por esses tabus, por esses imperativos inquestionáveis que acabam por transformar a sociedade num sistema fechado anómico: já não estamos perante o jogo entre-expressivo da dialéctica nomos/physis, constitutivo do imaginário social grego e ocidental, mas sob o domínio dum regime ontológico assente na dominação sem ‘Dominador’ – acabam por ser os dominados que se auto-impõem uma heteronomia incapaz de se pensar como inautenticidade, porque é vivida de acordo com um regime de consciência incapaz de pensar, imaginar, alternativas emancipadoras.

Daí a docilidade dos jovens apanhados na trama duma sociabilidade de sujeição e de capitulação. É inquietante ver que neste momento toda uma geração se acha incapaz de futuro e sem que isso mereça qualquer intervenção de fundo dos responsáveis políticos. A este título a mensagem de Ano Novo do Presidente da República não pode ser menos sintomática: cuidado com a economia, ou seja, sejam aves implumes de aviário bem comportadas. Enquanto se considerar a ‘despesa’ como algo a combater a todo o custo, sem olhar às consequências do não investimento social (refiro-me do investimento da sociedade em si própria e não à caridadezinha de Estado), e sem chamar a atenção para o que realmente importa, não haverá ‘República’, mas uma ditadura sem ‘Ditador’.

Se o imaginário social dos séculos XIX e XX foi muito marcado pela Esperança, hoje parece que vivemos para lá do desespero ou da possibilidade de o assumir como sintoma duma necessidade de mudança.

E isto entra em contradição com o investimento, ao nível económico e do imaginário social, que é feito na educação. E se olharmos mais de perto, podemos ver que esse investimento, cada vez mais imperativo, não obedece a uma lógica de emancipação dos sujeitos para a criação de futuro, mas a uma tendência cada vez mais irresistível para uma conformação das novas gerações às exigências do ‘mercado’ e das suas cada vez mais restritas ofertas de reconhecimento social, ou seja, a precariedade no emprego e o desemprego estrutural, cada vez mais presente na nossa realidade social.

A situação actual desta geração que cresce fora da cidadania deve merecer uma mobilização política no sentido de restaurar a democracia. Se há um grupo crescente de pessoas que está a ser expulso da cidade, empurrado para uma marginalidade social acabrunhante, torna-se necessário que se tomem medidas, nascidas duma verdadeira tomada de consciência da necessidade de se tomar a sociedade como o principal foco do investimento colectivo.

E aqui não podemos deixar de pensar o papel do Estado e a necessidade de colocar o investimento público ao serviço democracia. E isso não se faz com TGVs e com a megalomania dos guardiões da ‘animal farm’ social.

E não se pense que a ‘docilidade’, a passividade, dos indivíduos apanhados na teia do determinismo social não pode, no fundo, esconder um barril de pólvora. O problema é que o conceito de Revolução foi progressivamente desmantelado ao ponto de hoje não poder servir de centro motivador do imaginário social. Embora o imaginário social mediatizado viva ainda na sombra do Maio de 68. Em 1994, Vicente Jorge Silva, director do Público, denunciou estrondosamente a inadequação sócio-política daquilo a que ele chamou a ‘geração rasca’. E o imaginema colou: hoje já não há ‘geração rasca’, ou geração ‘à rasca’, fala-se em geração ‘perdida’. E aqui ‘perdida’ não significará ‘desorientada’, mas reduzida a nada em termos sociais, obliterada, condenada. E, por mais estranho que pareça, o gesto totalitário dum director de jornal auto-erigido em educador do povo, ‘iluminado’ e nostálgico da revolução como deve ser, do Maio de 98, acabou por ser uma das causas da actual situação sócio-cultural, embora uma causa não estrutural.

Mas talvez estejamos longe de ver Roma a arder. Até a pólvora pode ser desperdiçada, como tudo o que a sociedade pode alcançar e não chega sequer a tornar-se consciente ao nível das possibilidades.

(continua)

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Excelente artigo, muito completo. Deve ser também discutido, como é óbvio, no grupo de politica.

Viviane Forrester – em "O horror económico" já mostrava como as condições económicas levariam, em pouco tempo, da precariedade de vida ao próprio desaparecimento da classe trabalhadora.

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