(quadro atribuído a Cristóvão de Morais)
Publico aqui a continuidade de um texto anterior, de comentário ao poema inicial da Mensagem de Pessoa: "O dos Castelos".
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.
O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.
O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.
Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.
Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.
(texto em formulação e a continuar)
"[...] a verdade / Que morreu D. Sebastião"
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Publicada por Paulo Borges à(s) 09:36Etiquetas: D. Sebastião, Fernando Pessoa, Mensagem, Quinto Império
"[...] a verdade / Que morreu D. Sebastião"
(quadro atribuído a Cristóvão de Morais)
Publico aqui a continuidade de um texto anterior, de comentário ao poema inicial da Mensagem de Pessoa: "O dos Castelos".
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.
O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.
O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.
Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.
Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.
(texto em formulação e a continuar)
2 comentários:
- Kunzang Dorje disse...
-
"Para os gregos, teria havido duas formas de vida possíveis ao homem após a sua morte: ou assemelhar-se àquele que dorme, ou gozar do sentimento e da lembrança, tal os sages. É esta segunda vida, ainda a concedida pela saudade. E justamente será em Camões, frei Agostinho da cruz, Pessoa e Pascoaes, que surge mais explícita a anamnese, como esforço de luta contra o olvido, sofrido entre vida e morte, entre o se celeste e o ser terrestre assumido."
Dalila Pereira da Costa, in Da Serpente à Imaculada - 15 de dezembro de 2009 às 11:47
- Kunzang Dorje disse...
-
" A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores."
Como fazer isto? Como despertar? Como "gozar do sentimento e da lembrança", tal os sages"? Como passar das palavras à acção? Como compreender o investimento da energia dos instintos e pulsões do homem em fins superiores? Estamos a falar em sabedoria tântrica e uso das pulsões sexuais?
Abraços. - 15 de dezembro de 2009 às 12:00
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Manifesto
Aqui se apresenta a proposta de um cidadão português que, no decurso da sua docência universitária, obra publicada e intervenção cultural, tem seguido com interesse e preocupação os rumos recentes de Portugal e do mundo. Convicto de que urge refundar Portugal, eis uma lista de prioridades para o país e o mundo melhor a que temos direito e que todos temos o dever de construir. Agradecem-se os contributos críticos, de modo a que a proposta se aperfeiçoe e complete e sirva de plataforma para a discussão pública e a intervenção cultural e cívica que visa, pelos meios que se verificarem ser os mais oportunos.
I – Portugal é uma nação que, pela diáspora planetária da sua história e cultura, pela situação geográfica e pela língua, com 240 milhões de falantes em toda a comunidade lusófona, tem a potencialidade de ser uma nação cosmopolita, uma nação de todo o mundo, que estabeleça pontes, mediações e diálogos entre todos os povos, culturas e civilizações. Este perfil vocaciona-nos para o cultivo dos valores mais universalistas, promovendo o diálogo com todas as culturas mundiais. Os valores mais universalistas são aqueles que promovam o melhor possível para todos, uma cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, visando não apenas o bem da espécie humana, mas também a preservação da natureza e do bem-estar de todas as formas de vida animal, como condição da própria qualidade e dignidade da vida humana.
II – O nosso potencial universalista tem sido sistematicamente ignorado pelas nossas orientações governativas, desde a época dos Descobrimentos até hoje. Se no passado predominou a pretensão de dilatar a Fé e o Império, hoje predomina a sujeição da nação aos novos senhores do mundo, as grandes esferas de interesses político-económicos. Portugal está ao serviço da globalização de um paradigma de desenvolvimento económico-tecnológico que explora desenfreadamente os recursos naturais e instrumentaliza homens e animais, donde resulta um enorme sofrimento, um fosso crescente entre homens, classes, povos e nações, a redução da biodiversidade e o arrastar do planeta para uma crise sem precedentes.
III – A assunção do nosso potencial universalista implica uma reforma das mentalidades, com plena expressão ética, cultural, social, política e económica. Nesse sentido se propõem as seguintes medidas urgentes, que visam implementar entre nós um novo paradigma, convergente com as melhores aspirações humanas e com os grandes desafios deste início do século XXI:
1 – Portugal deve dar prioridade absoluta a um desenvolvimento económico sustentado, que salvaguarde a harmonia ecológica e o bem-estar da população humana e animal. A Constituição da República Portuguesa deve consagrar a senciência dos animais – a sua capacidade de sentir dor e prazer - e o seu direito à vida e ao bem-estar. Portugal deve aprender com a legislação das nações europeias mais evoluídas neste domínio, adaptando-a à realidade nacional.
2 – Portugal deve ensaiar modelos de desenvolvimento alternativos, que preservem e promovam a diversidade cultural, biológica e ecoregional. Há que promover a sustentabilidade económica do país, desenvolvendo as economias locais. Devem-se substituir quanto possível as energias não-renováveis (petróleo, carvão, gás natural, energia nuclear), por energias renováveis e alternativas (solar, eólica, hidráulica, marmotriz, etc.), superando o paradigma, a vulnerabilidade e as dependências de uma economia baseada no petróleo e nos hidrocarbonetos. Deve-se particularmente explorar as potencialidades energéticas dos nossos mais de 900 km de costa.
3 - Devem-se ensaiar formas de organização económica cujo objectivo fundamental não seja apenas o lucro financeiro. Deve-se assegurar o predomínio da ética e da política sobre a economia, de modo a que a produção e distribuição da riqueza vise o bem comum do ecossistema e dos seres vivos, a satisfação das necessidades básicas dos homens e a melhoria geral da sua qualidade de vida, bem como o acesso de todos à educação e à cultura.
4 - Deve-se investir num programa pedagógico de redução das necessidades artificiais que permita oferecer alternativas ao produtivismo e consumismo, fazendo do trabalho e do desenvolvimento económico não um fim em si, com o inevitável dano da harmonia ecológica, da biodiversidade e do bem-estar de homens e animais, mas um mero meio para a fruição de um crescente tempo livre de modo mais gratificante e criativo. Deve-se fiscalizar mais rigorosamente o crédito ao consumo, de forma a evitar o crescente endividamento das famílias.
5 – Há que criar um serviço público de saúde eficiente e acessível a todos, que inclua a possibilidade de optar por medicinas e terapias alternativas, de qualidade e eficácia comprovada, como a homeopatia, a acupunctura, a osteopatia, o shiatsu, o yoga, a meditação, etc. Estas opções, bem como os medicamentos naturais e alternativos, devem ser igualmente comparticipadas pelo Estado.
6 – Importa informar e sensibilizar a população para os efeitos nocivos de vários hábitos alimentares - nomeadamente o consumo excessivo de carne - , para o meio ambiente, a saúde pública e o bem-estar de homens e animais. Sendo uma das principais causas do aquecimento global, do esgotamento dos recursos naturais e do sofrimento dos animais, há que restringir e criar alternativas à agropecuária intensiva. Deve-se divulgar a possibilidade de se viver saudavelmente com uma alimentação não-carnívora, vegetariana ou vegan e devem-se reduzir os impostos sobre os produtos de origem natural e biológica.
7 - Portugal, a par do desenvolvimento económico sustentado, deve investir sobretudo nos domínios da saúde, da educação e da cultura, não só tecnológica, mas filosófica, literária, artística e científica. O Orçamento do Estado deve reflectir isso, reduzindo os gastos com a Defesa, o Exército e as obras públicas de fachada. Urge moralizar e reduzir os salários e reformas de presidentes, ministros, deputados e detentores de cargos na administração pública e privada, a par do aumento dos impostos sobre os grandes rendimentos.
8 - Redignificar, com exigência, os professores e todos os profissionais ligados à educação e à cultura. A educação e a cultura não devem estar dependentes de critérios economicistas e das flutuações do mercado de emprego. Os vários níveis de ensino visarão a formação integral da pessoa, não a sacrificando a uma mera funcionalização profissional. A par disto, há que sensibilizar as famílias para não abandonarem as crianças em frente dos computadores e dos maus programas de televisão. A televisão pública deve melhorar o seu nível, investindo mais em programas de informação e formação.
Nos vários níveis de ensino deve ser introduzida uma disciplina que sensibilize para o respeito pela natureza, a vida humana e a vida animal, bem como outra que informe sobre a diversidade de paradigmas culturais, morais e religiosos coexistentes nas sociedades contemporâneas. Nos mesmos níveis de ensino deve estar presente a cultura portuguesa e lusófona, bem como as várias culturas planetárias. Um português culto e bem formado deve ter uma consciência lusófona e universal, não apenas europeia-ocidental.
A meditação, com benefícios científicamente reconhecidos - quanto ao equilíbrio e saúde psicofisiológicos, ao aumento da concentração e da memória, à melhoria na aprendizagem, à maior eficiência no trabalho e à harmonia nas relações humanas - , deve ser facultada em todos os níveis dos currículos escolares, em termos puramente laicos, sem qualquer componente religiosa.
9 - Portugal deve assumir-se na primeira linha da defesa dos direitos humanos e dos seres vivos em todos os pontos do planeta em que sejam violados, sem obedecer a pressões políticas ou económicas internacionais. Portugal deve ser um lugar de bom acolhimento para todos os emigrantes e estrangeiros que o procurem para trabalhar e viver.
10 – Portugal deve aprofundar as relações culturais, económicas e políticas com as nações de língua portuguesa, incluindo a região da Galiza, Goa, Damão, Diu, Macau e os outros lugares da nossa diáspora onde se fala o português, sensibilizando a comunidade lusófona para as causas universais, ambientais, humanitárias e animais.
11 - Portugal deve promover a Lusofonia e os valores universalistas da cultura portuguesa e lusófona no mundo, dando o seu melhor exemplo e contributo para converter a sociedade planetária na possível comunidade ético-cultural e ecuménica visada entre nós por Luís de Camões, Padre António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Portugal deve assumir-se como um espaço multicultural e de convivência com a diversidade, um espaço privilegiado para o tão actual desafio do diálogo intercultural e inter-religioso, alargado ao diálogo entre crentes e descrentes. Deve precaver-se contudo de tentações neo-imperialistas e de qualquer nacionalismo lusófono ou lusocêntrico. A Lusofonia não deve abafar outras línguas e culturas que existam no seu espaço.
12 - Verifica-se haver em Portugal e na Europa em geral uma grave crise de representação eleitoral, patente na elevada abstenção e descrédito dos políticos, dos partidos e da política, os quais, segundo a opinião geral, apenas promovem o acesso ao poder de indivíduos e grupos que sacrificam o bem comum a interesses pessoais e particulares, com destaque para os das grandes forças económicas. As eleições são assim sistematicamente ganhas por representantes de minorias, relativamente à totalidade dos cidadãos eleitores, que governam isolados da maioria real das populações, que os consideram com alheamento, desconfiança e desprezo, tornando-se vítimas passivas das suas políticas. O actual sistema eleitoral também não promove a melhor justiça representativa, não facilitando a representação de uma maior diversidade de forças políticas e limitando-a às organizações partidárias, o que contribui para a instrumentalização do aparelho de Estado, dos lugares de decisão político-económica e da comunicação social pelos grandes partidos.
Esta é uma situação que compromete seriamente a democracia e que a história ensina anteceder todas as tentativas de soluções ditatoriais. Há que regenerar a democracia em Portugal, reformando o estado e o sistema eleitoral segundo modelos que fomentem a mais ampla participação e intervenção política da sociedade civil, facilitando a representação de novas forças políticas e possibilitando que cidadãos independentes concorram às eleições. Deve-se recuperar a tradição municipalista portuguesa e promover uma regionalização e descentralização administrativa equilibradas, assegurando mecanismos de prevenção e controlo dos despotismos locais.
Há que colocar a política ao serviço da ética e da cultura e mobilizar a população para a intervenção cívica e política em torno dos desafios fundamentais do nosso tempo, com destaque para a protecção da natureza, o bem-estar dos seres vivos e uma nova consciência planetária. Há que mobilizar os cidadãos indiferentes e descrentes da vida política, a enorme percentagem de abstencionistas e todos aqueles que se limitam a votar, para a responsabilidade de reflectirem, discutirem e criarem o melhor destino a dar à nação. Há que, dentro dos quadros democráticos e legais, promover formas alternativas de intervenção cultural, social e cívica, que permitam antecipar tanto quanto possível a realidade desejada, sem depender dos poderes instituídos.
Convicto de que estas medidas permitirão que Portugal recupere o pioneirismo e criatividade que o caracterizou no impulso dos Descobrimentos, mas agora sem escravizar e explorar outros povos, apelo a que todos dêem o vosso contributo para a discussão, aperfeiçoamento e divulgação deste Manifesto. De todos nós depende que ele se constitua na plataforma de um movimento cívico e cultural de reflexão e acção, que nos arranque ao comodismo e passividade em que estamos instalados.
Por um Outro Portugal!
Contribuidores
- Ana Moreira
- Ana Rodrigues
- Bernardo Almeida
- Dr Carlos Gonçalves
- Duarte D. Braga
- Duarte
- Estudo Geral
- Fernando Emídio
- Gil
- Glimpse
- Helena Caetano
- Isabel Rosete
- Isabel Santiago
- João Beato
- João Lopes Aguiar
- José Magalhães
- Luís Miguel Dantas
- Luis Resina
- Luis Resina
- MJC
- Margarida
- Maria de Lourdes Teixeira Puga Alvarez
- Maribel Sobreira
- Maurícia Teles da Silva
- Minda
- Moysés
- P.F. Antunes
- Paulo Borges
- Pedro Miguel Estrela
- Pedro Paz
- Pedro Sena
- Rui Matoso
- Rute Pinheiro
- Sérgio Mago
- aluzdascasas
- ana
- castus
- ethel
- jads
- lurdes
- maria alvarez
- paula
2 comentários:
"Para os gregos, teria havido duas formas de vida possíveis ao homem após a sua morte: ou assemelhar-se àquele que dorme, ou gozar do sentimento e da lembrança, tal os sages. É esta segunda vida, ainda a concedida pela saudade. E justamente será em Camões, frei Agostinho da cruz, Pessoa e Pascoaes, que surge mais explícita a anamnese, como esforço de luta contra o olvido, sofrido entre vida e morte, entre o se celeste e o ser terrestre assumido."
Dalila Pereira da Costa, in Da Serpente à Imaculada
" A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores."
Como fazer isto? Como despertar? Como "gozar do sentimento e da lembrança", tal os sages"? Como passar das palavras à acção? Como compreender o investimento da energia dos instintos e pulsões do homem em fins superiores? Estamos a falar em sabedoria tântrica e uso das pulsões sexuais?
Abraços.
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